GENTIL CARDOSO VISTO POR QUEM O CONHECEU

O megafone e o boné eram uma característica do técnico (Blog Futebol e Arte)


O recifense do bairro da Torre primeiro fez sucesso lá fora para ser conhecido – e reconhecido – em sua terra. Já cultuado nacionalmente, foi três vezes campeão pernambucano: Sport-1955, Santa Cruz-1959, Náutico-1960. E dirigiu a Seleção Cacareco. Sobre esta, estou publicando uma série de reportagens neste blog. O técnico Gentil Alves Cardoso, logicamente, tem papel destacado.

Cacareco à parte, o ex-goleiro Valdir (Appel), hoje blogueiro e escritor, que passou pelo crivo do Homem do Boné, retrata-o num interessante e elucidativo capítulo em “Onde Ele Pisa Nascem Histórias”, um dos livros que publicou sobre futebol. Vejamos:
   
Baixo, roliço, de bochechas proeminentes, andar desengonçado, provavelmente provocado pelos largos quadris. Alpercatas, camisas folgadas costumeiramente fora das calças. Protegendo-o do sol, um inseparável boné; na mão direita, um megafone, extensão do seu braço, amplificador da sua voz.

Gentil Cardoso exercia sobre os jogadores um fascínio instigante.

Capaz de citar Sócrates e Platão em conversas corriqueiras, era também um frasista contumaz. Eternizou expressões conhecidas nos meios esportivos, como “vai dar zebra”, “futebol é uma caixinha de surpresas”, “quem desloca, recebe”, “quem pede, tem preferência”.

O Velho Marinheiro retratado em caricatura (Álbum dos Esportes)

Meu primeiro contato com esta figura cor de chocolate aconteceu no América carioca. Não me deu muita bola quando o presidente do clube, Volnei Braune, me apresentou como “um jovem goleiro de muito futuro”. Entretanto, no Vasco, quando João Silva fez as apresentações do elenco, mostrou que não me reconhecera. Elogiou-me dizendo: “Este deve ser bom, olha só o tamanho das mãos deste menino”.

Gentil retornava a São Januário disposto a repetir as conquistas dos anos 1950. Fez de tudo na vida: foi engraxate, padeiro, marinheiro e capitão reformado da Aeronáutica.
Aplicava nos clubes uma disciplina militar – mas era flexível e tolerante. Um quadro-negro no fundo dos vestiários, recepcionava diariamente os jogadores com uma mensagem otimista, de esperança, de renovação: “Você ainda tem um segundo, lute!”; “O vigor físico é bom, o vigor intelectual, melhor ainda. Mas acima de todos está o vigor do caráter – Roosevelt”.

Instruções nos preparativos da Seleção Cacareco (Fundação Joaquim Nabuco)

Escalava diariamente um jogador como Oficial de Dia. Era engraçado ver um atleta do clube se responsabilizando pelo cumprimento dos horários, cobrando caixinha pelos atrasos ou pelo recolhimento do material de treino.

Em 1967 era um sessentão moderno, atualizado e participativo. Adorava os Beatles, os Stones e a Jovem Guarda. Na prática de exercícios ao ar livre exigia dos jogadores o uso sumário do uniforme. Só não praticávamos exercícios nus, como os atletas da antiga Grécia, por causa da censura.

Fazia o elenco cantar as músicas de Erasmo e Roberto Carlos, enquanto davam intermináveis voltas na pista de atletismo do clube. Ficaram afiados na sua canção preferida: “E que tudo mais vá pro inferno!”, que se tornou um grito de guerra sob a sua regência.

Em Cádiz, quando disputamos o Troféu Ramon Carranza, causou espanto à imprensa local o fato de um goleiro jovem, cabeludo e sem curriculum internacional ser o titular do Vasco, enquanto no banco de reservas estava um goleiro veterano, de larga experiência, Franz.

Já em terras portuguesas, os jornalistas lisboetas fizeram questão de questionar Gentil sobre esta preferência. Gentil sorriu, olhou-me com indisfarçável orgulho, e respondeu:
– Este é o meu goleiro jovem guarda!

Valdir, "o goleiro jovem guarda" (Literatura de Arquibancada)

Desde então, pude entender que Gentil Cardoso era muito mais do que o rótulo a ele atribuído de técnico frasista. Gentil estava à frente de seu tempo.

Infelizmente, sua última e definitiva volta a São Januário não foi um sucesso, acredito até que tenha sido o último clube no qual trabalhou. Mas me deixou profundas marcas pelo resto dos meus dias.    


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