BOLA, TRAVE E CANELA-Lenivaldo Aragão

 Presidente do Comércio deu um chute no preconceito racial

 

 

O Comércio Futebol Clube em 1952. A partir da esquerda, Cassimiro, Perinho, Toquinho, Romildo, George, Ramiro Limoeiro, Maurílio, Guri (o mais tarde deputado estadual Hugo Martins), Nem, Biguá e Paulo de Júlio (Foto cedida por Luiz Teófilo): 


Numa época em que asfalto nas estradas do Nordeste era perna de cobra, o Comércio Futebol Clube aventurou-se a sair de Caruaru, comendo poeira um dia inteiro, para jogar amistosamente em Juazeiro da Bahia. Esta cidade, como se sabe, é gêmea da pernambucana Petrolina, tendo o Rio São Francisco como divisória. É a mesma do imbróglio havido recentemente quando do jogo do Sport lá, pela Copa do Brasil.

Entre equipes amadoras ou semiamadoras, uma partida assim, a quase 800 quilômetros de distância, era recebida pelos jogadores com muita alegria. O Central ainda não havia entrado no Campeonato Pernambucano, e a disputa do título de campeão caruaruense pelo trio Central, Comércio e Vera Cruz era acirrada.  

Cada um com seus cartolas puxando a brasa para sua sardinha, como Pedro de Melo, José Teixeira, Pedro Victor de Albuquerque, Elias Soares e o jornalista Celso Rodrigues (Central); Walter Lira, ou Walter Branquinha, ex-goleiro e agora presidente, Mário Cabral, Tio, Dandão (Comércio); Antônio Inácio de Souza e seus filhos Humberto e Gilberto, cronista Waldemar Porto (Vera Cruz) e por aí vai.

Pairando sobre eles, a figura diplomática e pacificadora de Gercino Tabosa, gerente de banco, um gentleman, presidente da LDC, a Liga Desportiva Caruaruense.  São Paulo e Rosarense eram meros participantes e vez por outra um deles atrapalhava a vida de algum pretendente à coroa.

A turma do Comércio sabia que o Veneza, o adversário a ser enfrentado em Juazeiro, merecia respeito, uma vez que vinha de vitórias sobre o poderoso Bahia (4x1) e o Fluminense de Feira de Santana (2x1). Depois de uma cansativa, mas divertida peregrinação, a ‘embaixada’ de Caruaru chegou a Petrolina, onde ficou hospedada, já com a noite iniciada. Enquanto os jogadores repousavam, depois do jantar e da resenha, que não pode faltar numa ocasião dessas, os dirigentes aproveitavam para fazer a famosa digressão pela cidade onde a família Coelho dava e continua a dar as cartas.

No dia seguinte, após o almoço, a turma de Caruaru atravessou a ponte, lutou muito diante da arrumada equipe do Veneza, mas não conseguiu evitar a derrota. Porém, nada que fizesse vergonha, apenas 1 x 0.

Como sempre acontecia nessas excursões, estava anunciado um baile no Apolo Clube Social, oferecido pela sociedade juazeirense aos ‘ilustres visitantes.’ A boleirada ficou alvoroçada. A diretoria, integrada por Walter Lira, Dandão, Mário Cabral, dublê de dirigente e treinador, e tendo como convidado o comandante Paulo, do batalhão de Petrolina da Polícia Militar de Pernambuco, fez-se presente. A comissão de cartolas estava ainda fazendo o aquecimento etílico, e o zagueiro Celedino, um dos jogadores mais famosos daquele tempo em Caruaru, logo começou a mostrar sua habilidade de dançarino, ele que era bom de gafieira. Na realidade, ele não era do Comércio. Ligado ao Central, tinha ido enxertar o time do hoje bairro Indianópolis, para usar um jargão da época. O ziguezague de Celedino na pista de danças causava admiração, mas, como alegria de pobre dura pouco, um dos jogadores foi solicitado por um dirigente do Apolo a avisar à diretoria visitante que desse um jeito de tirar o dançarino do salão.

– O clube não permite a entrada de preto e muito menos que dance – avisou.

Ao receber o recado, doutor Walter Lira, um cidadão pacato e festeiro, mas decidido, que não era de levar desaforo para casa, deu logo sua sentença, de modo a que todos ouvissem:

– Onde o presidente do Central entrar, os jogadores também entram. Vamos embora!

O capitão Paulo queria acabar com o baile. E até que podia. Era só mandar a orquestra parar de tocar, uma vez que o conjunto musical pertencia à Polícia Militar. Todavia, o oficial foi acalmado pelos caruaruenses.

Nesse ínterim vai chegando o lateral Escurinho com outro grupo. É advertido pelo zagueiro Lala de que negro não pode participar do baile.  Nisso, o presidente Walter Lira puxa sua turma para uma sorveteria situada nas imediações, também chamada de Apolo e dá o grito de alforria:

– Onde o presidente do Comércio bebe, os jogadores também bebem!

A cerveja e o rum, muito em voga na época, animaram a noite dos caruaruenses, pretos e brancos, com muita conversa e muita batucada, tudo por conta da Casa, ou seja, o Comércio Futebol Clube.

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