Desfile de abertura. Na frente, Laudenor Pereira, Jorge Costa, Rubem Moreira e Nílson Ramos Leal (Foto: Arquivo do Blog) |
Vieram os treinamentos finais e a fase de adaptação para a estreia do Brasil no Campeonato Sul-Americano Extra. Os brasileiros praticamente não estranharam o ambiente em que passaram a viver. Na época, Guayaquil equivalia-se ao Recife em tamanho e, como a capital pernambucana, está situada no nível do mar.
O local onde se realizariam os jogos era
conhecido apenas por Estádio Modelo. Só alguns anos depois receberia o nome de
Alberto Spencer, em homenagem ao maior jogador equatoriano da época, o atacante
Spencer.
Na inauguração, em 24 de julho de
1959, jogando pelo Barcelona local, Spencer marcou dois gols no Huracán, da
Argentina, e em seguida arrasou diante do Peñarol, do Uruguai, que terminou
contratando-o.
Spencer, que já havia defendido mais
de uma vez a seleção de seu país, foi naturalizado uruguaio para poder jogar
pela Celeste. Após sua morte, em 03/11/2006 – nasceu em 06/12/1937 –, o Estádio
Modelo passou a ter seu nome. No Sul-Americano em que Pernambuco representou o
Brasil, Spencer era o astro do time da casa.
Spencer, mais tarde ao lado de Pelé. O estádio passou a ter seu nome (Foto: reprodução internet) |
TÉCNICO SOB CENSURA
Havia antes mesmo de a Seleção
Cacareco deixar o Recife, uma preocupação quanto a uma suposta preferência do
técnico Gentil Cardoso por determinados jogadores, como o lateral-esquerdo
Dodô, o ponta-direita Tião e o meia-de-ligação Biu, todos do Santa Cruz. Biu
era prata da casa, enquanto Dodô e Tião tinham vindo do Rio, indicados pelo
treinador.
Um ano antes, na Copa do Mundo, na
Suécia, quando o Brasil levantou a taça pela primeira vez, a Canarinha já não
era mais escalada unicamente pelo técnico. Este submetia o time ao crivo de um
grupo chamado Comissão Técnica. O critério foi acoplado ao protocolo da
Canarinha. É claro que a missão de escalar a equipe continuou nas mãos do treinador,
porém, com os demais membros da CT tendo o direito de argui-lo diante de alguma
dúvida.
No caso da Cacareco, o grupo era
formado, além de Gentil, por Rubem Moreira (chefe da delegação), Laudenor
Pereira (médico), Jair Raposo (preparador físico) e Jaime de Brito Bastos
(administrador). Era o Plano Paulo Machado de Carvalho, assim chamado em alusão
ao dirigente paulista que chefiou a delegação no Mundial de 1958.
O SPRINTER GERALDO
No Equador, o Brasil estava
programado para abrir o campeonato, enfrentando o Paraguai, num sábado, à
noite. Rubem Moreira num pé e no outro. Queria
pressa na reunião porque horas antes de a bola rolar haveria o desfile das
delegações e ele teria que estar presente. Na solenidade de abertura do
campeonato, o Brasil só contaria com alguns reservas, posto que os titulares permaneceriam
descansando, à espera do primeiro jogo, horas depois.
Os fatos a seguir me foram narrados
pelo administrador da Seleção, Jaime de Brito Bastos, membro da Comissão.
O Poderoso Chefão tinha pressa.
– Tem que ser rápido, Gentil.
Dessa maneira, Rubem Moreira queria evitar
a oportunidade de o treinador, com sua lábia, enrolar os demais componentes da
CT.
– Goleiros temos Waldemar e... – Gentil
nem completou a frase. Rubão foi logo trovejando:
– Não vai querer botar Walter, não é
Gentil?
O goleiro Waldemar, que, aliás, tinha a
preferência da torcida, ganhou a parada.
Apesar de Gentil ter levado dois
laterais direitos, Bria e Geroldo (a zaga
era formada pelo lateral direito e pelo zagueiro central), quem terminou
sendo escalado para a direita foi Zequinha, um zagueiro central, deslocado de
sua posição original. Formou a zaga com Edson.
Os três componentes da intermediária –
Biu, Clóvis e Givaldo – foram aprovados sem contestação.
Sem Moacir, que regressara ao Recife,
para formar a dupla de meio-campo com Biu, o treinador optou por Geraldo. E empulhou
Rubem Moreira.
– Vai jogar o nosso grande “sprinter”.
– Nosso o quê? – perguntou Rubem meio
sem graça.
– Geraldo – respondeu o treinador – sem
maiores delongas, no que teve a aprovação do cartola.
(Geraldo atuava
em várias posições, e Gentil, para perturbar o cartola procurou compará-lo a um
Sprinter, carro da Mercedes Benz).
Vieram os quatro componentes do ataque,
e de acordo com a narrativa de Jaime, o treinador fugindo à regra, começou a
escalar pela ponta esquerda.
– Por que não o ponta-direita logo? –
contrariou-se Rubão.
– Calma, vou jogar pela esquerda.
Dada esta explicação, o técnico foi
soltando os nomes, mas de trás para frente: Elias, Zé de Melo, Paulo... Faltava
o ponta-direita. Mais suspense.
– Tenho Tião e Traçaia.
Adivinhando a intenção de Gentil, Rubão
interveio com uma ameaça:
– Se botar Tião, eu passo um telegrama
pra CBD e mando buscar outro técnico.
Gentil tomou um susto, mas logo
desmanchou-se em amabilidade:
– Vou botar Traçaia, que é meu garoto,
jogador que eu fiz. O senhor está nervoso, presidente? Estou apenas brincando.
BRASILEIROS APLAUDIDOS
Finalmente veio a abertura do Campeonato Sul-Americano Extra. No sábado 5 de dezembro de 1959, à tarde, o Estádio Modelo, de Guayaquil estava lotado. Inicialmente houve o desfile das delegações.
Coube ao massagista João de Maria, um
ex-jogador do Santa Cruz, a honra de conduzir garbosamente a bandeira do
Brasil. Já seu companheiro Edmundo Lopes, do Estudante, clube localizado no
bairro recifense do Barro, situado na Zona Oeste da cidade, levava,
orgulhosamente, à altura do peito esquerdo, a miniatura do rinoceronte
Cacareco, o símbolo da Seleção.
À noite, a Seleção Cacareco, vestindo
a camisa nacional, fazia sua estreia, enfrentando o Paraguai, o time das
camisas alvirrubras, fazendo lembrar o Náutico e o Bangu, conforme havia
afirmado o técnico Gentil Cardoso numa preleção aos atletas.
Cumprindo o cerimonial houve a
execução dos hinos dos dois países, a cargo de uma banda militar. Os jogadores
da Cacareco foram delirantemente aplaudidos porque não se limitaram a ouvir a
banda tocar, mas cantaram o Hino Nacional Brasileiro do começo ao fim. Os
aplausos da torcida equatoriana atestaram o acerto do treinador em providenciar
as aulas musicais nos preparativos da Seleção.
Antes do jogo havia alguma apreensão
entre os atletas, mas a Canarinha derrotou
o Paraguai por 3x2.
“HAT-TRICK” DE PAULO
Foi uma partida emocionante, e o
ponta-esquerda Elias, o baiano de Ilheus Elias Caixão, do Náutico,
constituiu-se na maior figura do jogo, merecendo muitos elogios da imprensa
sul-americana. Porém, o centroavante Paulo foi decisivo, assinalando todos os
gols brasileiros.
O Brasil dominou o primeiro tempo e
foi para o vestiário, no intervalo, vencendo por 2 x 0, gols de Paulo, aos 22 e
aos 40 minutos.
Na etapa complementar, Silvio Parodi
marcou os dois tentos paraguaios, tendo sido um de pênalti, e Paulo voltou a
balançar a rede guarani, fazendo o gol da vitória e realizando o que hoje é
chamado de “hat-trick”. A arbitragem foi do equatoriano Boanerges Caballo.
Brasil: Waldemar; Zequinha, Edson
e Givaldo; Biu
e Clóvis; Traçaia, Zé de Melo
(Tião), Paulo, Geraldo e Elias. Paraguai:
Aguillar; Gonzaga, Monin e Vilalba; Aguirre e Lescalud; Benitez (Jaro), Insfan,
Muñoz, Cabral e Silvio Parodi.
Devido ao fuso horário equatoriano,
de duas horas a menos, os pernambucanos ficaram até tarde da noite colados aos
rádios, acompanhando as transmissões do jogo.
JOGADORES RECUSAM O BICHO
Estrear com o pé direito sempre causa
alegria, principalmente quando se trata de uma competição internacional.
Portanto, no dia seguinte à vitoriosa estreia brasileira, no Hotel Majestic, em
Guayaquil, os brasileiros desfrutavam o triunfo, principalmente o vaidoso
treinador Gentil Cardoso, que andava pelos corredores mostrando um largo
sorriso.
E o tradicional quadro negro de Gentil,
instalado na sala onde o técnico se reunia com o grupo, trazia uma frase não
muito apropriada para o momento: “Não tire catota em público. É falta de
educação”. Rubem Moreira reprovou a frase, que, como sempre fora escrita por
Gentil, e mandou retirar o quadro.
Em dado momento, o animado, mas
sóbrio ambiente da Cacareco, explodiu. Gentil Cardoso, achando que o bicho de
dez dólares pela vitória sobre os paraguaios era irrisório – como qualquer
técnico, ele recebia dobrado, – instigou seus comandados a recusarem o prêmio.
O objetivo era forçar um aumento na premiação. O treinador argumentava, com
muita razão, que se fosse a verdadeira Seleção Brasileira, jamais seria
oferecida uma gratificação que ele considerava tão insignificante.
O administrador da delegação, Jaime de
Brito Bastos, e o tesoureiro De Francicis aguardaram a chegada dos jogadores ao
refeitório para o café da manhã, convidando-os a receber o bicho.
– Quero todo o mundo com dinheiro no bolso –
havia determinado Rubem Moreira, desmanchando-se em felicidades.
O primeiro jogador abordado pelos
pagadores foi o lateral-esquerdo Givaldo, que recusou o prêmio, sob esta
alegação:
– Seu Gentil disse que a gente só
recebesse bicho de 20 dólares.
Rubem Moreira estava na cama quando foi
informado daquela decisão. De cueca mesmo, como estava, saiu corredor afora,
soltando seu palavrório impróprio para menores e invadiu o quarto de Gentil
Cardoso, como uma bala, sem dar ao técnico nem tempo de respirar:
– Quem manda aqui sou eu. Você vai
voltar pro Brasil, e tem mais uma coisa. Quem não receber o bicho vai ser
punido.
Na sua disparada verbal, como se fosse
uma metralhadora, o intempestivo cartola, externando nervosismo ao quadrado,
não deu o menor espaço para o treinador se explicar. Enfurecido, berrou:
– Jaime, convoca Edson (o capitão do time) pra uma reunião agora mesmo e passa um telegrama
a Havelange (o presidente João Havelange,
da CBD), pedindo um técnico.
A dupla missão foi rapidamente
cumprida, e embora sem saber, pois achava que se tratava apenas de uma das
costumeiras reações raivosas do cartola, Gentil Cardoso estava caindo.
A CBD chegou a deixar de prontidão Antoninho, treinador das seleções de base do Brasil, e que em 1965, na fase do Hexa, dirigiria a equipe do Náutico no tricampeonato. Porém, a situação terminou sendo contornada, com o pedido de desculpas do ultrajado treinador. E os jogadores receberam a gratificação estabelecida pela chefia da delegação, tendo sido o treinador o primeiro a assinar a folha de pagamento.
O FENÔMENO ELIAS CAIXÃO
Na vitoriosa estreia do Brasil contra o
Paraguai, o célebre Elias Caixão, já começando a dobrar o ‘Cabo da Boa
Esperança’, transformou-se num verdadeiro azougue, correndo de um lado a outro
do campo.
Incansável, o baiano Elias, ex-defensor
do Vitória e da equipe da Boa Terra no Campeonato Brasileiro de Seleções,
despertou a atenção, entre outros, do ex-craque da Seleção Argentina Guillermo
Stabile, que acompanhava a competição, como enviado especial de um jornal
uruguaio.
– Que fenômeno esse ponta-esquerda!
Quem é ele? – perguntou Stabile ao administrador da delegação brasileira, Jaime
de Brito Bastos.
O antigo ídolo argentino mostrava-se um
tanto irônico, insinuando que o baiano jogara dopado. O antigo craque platino
tinha lá suas razões.
Contou Givanildo Alves em 1995, no capítulo 21 da série “História do Futebol em Pernambuco”, publicada pelo Diario de Pernambuco: “... Nessa noite, contra o Paraguai, Elias estava demais. Corria o campo todo, parecia um cavalo. Teve um momento em que sofreu uma falta perto da linha lateral e saiu gritando que estava cego. O médico Laudenor Pereira e o massagista João de Maria correram para socorrê-lo, e Elias, deitado, espumava, como um cão hidrófobo. Elias não estava cego. Elias estava era dopado. Tomara estimulante demais.”
Quando Jaime disse que se tratava de
Elias Caixão, Stabile soltou uma sonora gargalhada.
– Caixón? – perguntou, admirado.
Jaime tratou de explicar que ele era
meio quadrado em matéria de raciocínio, daí o apelido.
(Segundo Zezinho, o ponta-direita limoeirense Zezinho Caixão, certo dia
houve uma desavença entre ele e Elias, no quintal da concentração do Náutico,
situada à Rua Santo Elias, bairro do Espinheiro. Os dois se estranharam na
disputa de um caixão vazio, que servia de assento, nas ‘resenhas’ dos
jogadores. A partir daí o apelido Caixão passou a acompanhar o nome deles:
Zezinho Caixão e Elias Caixão.)
– Elias era uma espécie de Dedeu da sua
época –, gostava de lembrar Jaime, referindo-se ao ponta-direita do Náutico,
dos anos 70, baiano, como Elias, e que ficou célebre pelas expressões
hilariantes a ele atribuídas, tipo “comigo ou sem migo”.
Dizem que um garçom, no Equador, ao
oferecer mamão a Elias perguntou-lhe:
– Te gusta papaya, muchacho?
Ao que o jogador teria respondido,
misturando espanhol e português:
– Me gusta papaya, mas me gusta muito
mais mamaya.
Contou o superintendente da Seleção
Brasileira, que dias depois da vitória por 3x2 sobre os paraguaios, foi
abordado por Elias, nos seguintes termos:
– Tem um jornalista que quer me
contratar pra jogar no Uruguai, mas eu acho que não vou. O dinheiro lá é
completamente diferente do nosso e não vai dar certo.
Edmundo carrega o Cacareco, símbolo do Brasil (Foto: Arquivo do Blog)
Está republicado no blog: www.robsonsampaio.com.br
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