Futebol e carnaval na Sexta-Feira Santa e a Pedra da Bicuda

 LENIVALDO ARAGÃO

Pedra da Bicuda, em Santa Cruz do Capibaribe (Foto: Face)


Sou do tempo em que a Semana Santa era dedicada a uma intensa celebração religiosa, com penitências, jejuns, abstinência e privações. As comemorações tinham início no Domingo de Ramos, passando a ter plena evidência na Quarta-Feira de Trevas, indo até o Domingo da Ressureição ou Domingo de Páscoa.

Havia dois lados profanos, os quais se a Igreja não aprovava, não se empenhava em reprimir. Na quarta, a incômoda e desrespeitosa brincadeira do Serra Velho levava um grupo a se aproximar da residência de uma pessoa idosa, altas horas da noite, munido de um serrote. Provocava-se ruído, com o instrumento serrando alguma coisa. Ao mesmo tempo, entre perguntas e respostas, era anunciado um suposto testamento para quando a “vítima” partisse. Muitas vezes os malfeitores eram espantados sob ameaça de balas.

Seu Chico Velho, que morava e tinha propriedade às margens do Riacho Tapera, na minha Santa Cruz do Capibaribe, já antevendo que poderia ser um dos alvos dos moleques, preparava-se com uma espingarda artesanal. Em vez de chumbo ou pólvora, sal. Se o tiro fosse certeiro, ai de quem fosse atingido.

No Sábado de Aleluia procedia-se à tradicional queima do “judas”. Um boneco de pano, na altura de um adulto, simbolizando um político ou uma pessoa malvista no lugar, era esquartejado e às vezes queimado sob a zombaria dos participantes do brinquedo de mau gosto.

No que tange ao respeito que se tinha, até as mundanas costumavam se resguardar, suspendendo suas ‘atividades’ às 23 horas da quarta-feira, só voltando a atuar a partir do primeiro minuto do Sábado de Aleluia.

Eu mesmo já fiquei de plantão no Bar Ypiranga, na Rua Visconde de Inhaúma, em Caruaru, esperando que desse meia-noite para iniciar o tei-tei, com uma cerveja geladíssima, servida pelo garçom Abel.  

Não se comia carne, apenas peixe. Os mais pobres compraziam-se com nacos de bacalhau. Proprietários rurais costumavam promover uma pescaria às vésperas da Semana Santa para botar seu produto na rua. Isso nas cidades e vilas, pois nas capitais, caso do Recife, os pescadores autônomos ou as empresas de pesca abarrotavam os mercados públicos, principalmente o de São José, das mais diferentes espécies colhidas nas azuladas  águas do mar.   

Lembro-me de uma passagem do meu tempo de adolescente em Santa Cruz do Capibaribe. Acompanhava alguns adultos para o habitual mergulho no famoso Poço da Pedra da Bicuda, no Rio Capibaribe, que passava por trás da Rua Grande, hoje denominada Padre Zuzinha.  Havia ainda Os Coqueiros, o Mufango e os poços Grande, da Cabra, da Cebola, da Professora. Nomes poéticos que ainda povoam meu juízo.

Por se tratar de uma Sexta-Feira Santa, havia uma polêmica no grupo sobre a natureza do pecado que se estava a cometer. De repente, em plena Rua do Pátio, cruza o nosso caminho padre Zuzinha, o pároco da cidade, por muitos venerado como se santo fosse. Alguém resolveu perguntar-lhe se era lícito tomar banho naquele dia. A verdade é que muita gente deixava de fazê-lo, como uma ação penitencial. Falando cândida e docilmente, o vigário explicou mais ou menos assim:

– Não tem proibição nenhuma, mas as pessoas resolvem se privar do banho, como uma mortificação, para se aliviar dos pecados.

No que Caboclo, uma marcante figura da cidade, indagou, provocando o riso geral:

– É como se alguém resolvesse fazer a barba sem creme ou sabão, com a pele seca...

– Mais ou menos isso – respondeu o bondoso padre.

Só para terminar, o recolhimento dos cristãos não permitia sequer pensar em jogo de futebol, mesmo os jogos de bola de meia ou de borracha da meninada. Muito menos em carnaval nestes dias, ao contrário do que vemos hoje.

Técnico do Santa Cruz em 1966, o saudoso Alexandre Borges, um educador, que durante muito tempo coordenou as atividades esportivas do Colégio Marista, era um católico praticante.

Sob seu comando, o Santinha estava para realizar um amistoso em plena Quarta-Feira de Trevas. Os dirigentes consultaram-no. Alexandre aprovou, mas só depois de ter consultado e recebido o consentimento do arcebispo de Olinda e Recife, d. Helder Câmara.  

 

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