RELEMBRANDO A MÁFIA DA LOTERIA

 Texto de Rafael Ribeiro / Correio do Estado-MS


Foto: reprodução


Em outubro de 1982, a revista Placar chegava às bancas brasileiras para entrar na história. 

Reportagem de Sérgio Martins escancarou o que viria a ser conhecido como 'Máfia da Loteria': ou seja, um grupo de apostadores do principal jogo de azar da época fraudava resultados de partidas para poderem ganhar o prêmio máximo acertando os resultados dos 13 jogos que formavam as apostas dos concursos.

A denúncia rodou o mundo, virou um case de sucesso no jornalismo e até hoje é citada em faculdades como exemplo a ser seguido.

Mas, o que não se sabe pela maioria das pessoas, é que em Mato Grosso do Sul já se sabia da atuação da tal máfia, visto que o caso veio à tona um mês antes pelo CORREIO DO ESTADO, em reportagem citada pela 'Placar' nas suas linhas que ganhariam a história.

"Biluca tentou subornar dois operarianos", estampava a manchete dos dias 18/19 de setembro daquele ano.

Chamada de 'Gang da Loteria' pelo jornal, é noticiado que o ex-zagueiro do próprio Operário tentou subornar dois jogadores, os atacantes Pastoril e Baianinho, para um clássico contra o Comercial, que aconteceria naquele final de semana, pelo Estadual daquele ano, vencido pelo Manda Brasa, que quebrou uma hegemonia de seis títulos do rival alvinegro (sendo três deles pelo campeonato do Mato Grosso unificado antes da divisão oficial).

A DENÚNCIA

Conforme estampou o CORREIO em sua edição bomba, a denúncia partiu de Pastoril, ídolo dos dois rivais campo-grandenses, revelado pelo Vasco e que até hoje mora na Capital.

Na manhã do dia anterior à reportagem, ele procurou o então diretor de futebol do Operário, Irineu Farina, para denunciar o esquema: uma oferta de 10 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 3,7 mil em valores atuais) para ajudar a dar Comercial no clássico.

A grande surpresa para os jornalistas, segundo relata o jornal, foi o homem acusado pelo suborno: Biluca, um dos heróis da histórica campanha de 1977 do Mais Querido, terceiro colocado naquele Campeonato Brasileiro. "Graças a Deus estou bem no Operário, ganho um bom salário, sou pobre, mas prefiro continuar assim, vivendo honestamente", disse Pastoril, após relatar o caso em detalhes.

O ex-zagueiro foi além e sugeriu que o colega conversasse com o ponta-direita daquele elenco, Baianinho, que sequer fora procurado pessoalmente. "É doloroso saber que existem dessas coisas no futebol brasileiro, sujo nível está caindo cada vez mais ao invés de evoluir", disse o jogador.

Farina, visivelmente irritado, no relato da reportagem, disse "que há muito tempo já suspeitava do envolvimento de Biluca com a gang da Loteria Esportiva." "Faltava apenas uma prova. E agora está tudo claro. Tanto é que o Operário já denunciou o caso à Polícia Federal", disse.

Não demorou para a PF dar uma resposta. No dia 21 daquele mês, o caso foi oficialmente arquivado, por falta de provas, conforme estampava o CORREIO no topo de sua página de esportes.

O delegado federal Antônio Martinez Perez, responsável pelo processo, decidiu pelo arquivamento diante da falta de provas até mesmo para a tentativa de suborno a Pastoril pelo telefone.

Biluca, que chegara ao Operário vindo do América-RJ e ficara no Galo até 1979, se defendeu como pôde nas duas reportagens publicadas pelo CORREIO. Na histórica 'Placar', contudo, conversas suas com apostadores foram expostas.

Em tempo, o ‘Comerário’ polêmico terminou com empate por 1 a 1, com o ex-zagueiro entre os presentes no Morenão para acompanhar o jogo.

O ESCÂNDALO

A Loteca, que existe ainda hoje, foi regulamentada no Brasil em 25 de março de 1970 e é realizada desde 19 de abril, quando foi feita uma rodada experimental no extinto estado da Guanabara, com prêmio fixo de 200 mil cruzeiros novos (cerca de R$ 73 em valores atualizados) e 100 mil bilhetes distribuídos. O jogo número um foi um clássico Flamengo e Fluminense. As vendas de apostas foram feitas em 48 barracas improvisadas.

Alguns envolvidos citados na reportagem da Placar (Fotos: reprodução  Placar)


Naquela época, era necessário acertar os resultados de treze jogos selecionados pela Caixa para ganhar o prêmio. Durante a fase experimental, era possível até marcar treze palpites triplos (quando todas as colunas são marcadas em uma linha), mas ninguém chegou a fazer os treze pontos — as chances matemáticas eram de 1:1 594 323 para obter o feito. Oito apostadores foram premiados com doze pontos e dividiram o prêmio líquido, com cada um recebendo cerca de 10 mil cruzeiros novos (R$ 4 hoje). Outras rodadas experimentais foram realizadas em 3 de maio, também na Guanabara, e em 17 de maio, em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília.

Oficialmente, os bolões começaram em 7 de junho, que foi também a primeira vez em que foram acertados treze pontos. O futebol já era febre no País, antes mesmo de a Seleção Brasileira ter faturado sua terceira Copa do Mundo, o que gerou muitas filas nas casas de apostas. O jogo mínimo custava 2 cruzeiros novos, com um duplo; o jogo com um triplo custava três cruzeiros novos.

O apostador preenchia um cartão e entregava-o na lotérica, que usava uma máquina manual da IBM, chamada Port a Punch, para furar dois cartões, um dos quais ficaria como comprovante com o apostador. Ao final de todos os jogos de domingo, um computador da Caixa Econômica Federal processava as apostas, em "apenas" dezessete minutos, de acordo com a revista Placar. O computador seguia lendo cartão por cartão até encontrar um com nove pontos (o mínimo para o prêmio ser rateado) e, então passava a separar todos os cartões com nove pontos até achar algum com dez; a partir daí seguia o mesmo processo, em busca de cartões com onze, doze e, eventualmente, treze pontos.

Segundo dados da própria Caixa, Campo Grande teve exatos e curiosos 13 acertadores da Loteca entre 1970 e 1984. Os dados, porém, são imprecisos, visto que a loteria só chegou em meados de 1971 e os prêmios eram pagos (e contabilizados) por Cuiabá até 1977.

Em 1978, no auge de popularidade da Loteria Esportiva, surgiram os primeiros boatos sobre uma máfia armada entre apostadores que se revezavam e faturavam prêmios gordos em dinheiro.

A coisa chamou a atenção primeiro pelo 'Jornal da Tarde', extinto jornal de São Paulo (SP), que denunciou um jogador que teria sido comprado da Francana, clube interiorano que estava nas primeiras divisões dos campeonatos Paulista e Brasileiro naquele ano, mas assim como no caso do Operário, a coisa foi arquivada por falta de provas. Mas elas viriam.

Em 1979, Milton Coelho da Graça, então diretor de redação da revista Placar, comentou com Juca Kfouri, então editor de projetos especiais e que cuidava da seção sobre a Loteria Esportiva, que vinha notando algumas coincidências quando poucas pessoas ganhavam em um teste. A pedido de Milton, Juca foi a Brasília (DF) pedir para ver os bilhetes premiados, mas o pedido foi negado, com a alegação de sigilo bancário.

Nesse mesmo ano, Milton deixou a Editora Abril, que publicava 'Placar', e Juca foi promovido a seu posto. Ainda com as suspeitas em relação à Loteria Esportiva, todo fim de mês provocava a redação: "Quem é o macho para descobrir a sacanagem da Loteria Esportiva?" Mas ninguém se pronunciava. Em outra viagem a Brasília, pediu novamente para ver os cartões ganhadores. Desta vez, mostraram-lhe alguns: "Nego colocava jogo triplo em partida que se cravaria seco", conta Juca. "Corinthians × Juventus, triplo. Flamengo × Olaria, triplo. Vasco × Botafogo, Vasco. Atlético-PR × Coritiba, Coritiba. Inter × Livramento, triplo. Não é possível. Eles cravam triplo em jogo fácil e seco para jogo difícil. Tem alguma coisa estranha nisso", disse o jornalista em seu livro, "Confesso que perdi".Caixa de Texto:

Quando comentou suas suspeitas na redação, no dia seguinte, conseguiu um voluntário para a empreitada: Sérgio Martins. Juca deu a ele prazo de um ano, cumprido à risca: no número 648, de 22 de outubro de 1982, foi publicada extensa reportagem sobre o caso, com denúncias de corrupção e manipulação de resultados. 

Doze páginas de nitroglicerina pura sobre um escândalo gigantesco, abarcando mais de uma centena de pessoas do universo do futebol.

Um trabalho de formiguinha de Sérgio Martins, que venceu o Prêmio Esso de jornalismo e farejou pista de uma quadrilha em Santos e, a partir daí, passo a passo, montou o quebra-cabeça de uma história assaz alarmante.

"A Loteria Esportiva é séria até a bola rolar", admitiu o radialista Flávio Moreira, um dos envolvidos e que foi denunciante que topou expor toda a mutreta. Nenhum dos 125 denunciados, entre jogadores, dirigentes, árbitros, técnicos e personalidades, foi preso. 

O petardo jornalístico de 'Placar' foi sucesso absoluto entre leitores e a opinião pública. O mesmo não ocorreu entre a chamada grande mídia, que preferiu contestar a reportagem em vez de cavar ainda mais fundo.

“Durante uma semana, apanhamos mais que Judas Iscariotes. Foram páginas e páginas de jornais repletas de desmentidos. Diariamente o Jornal Nacional mostrava os denunciados com suas versões. Placar, cuja edição vendera mais de 300 mil exemplares, era acusada de trair o futebol brasileiro, e a Caixa Econômica atestava a credibilidade da loteria que bancava”, conta Juca, em suas memórias.

O desfecho da história você já deve imaginar…

Pois é: não deu em nada!

As edições seguintes de 'Placar' trouxeram novas revelações e personagens. Porém, após mais de três anos de investigação, a Polícia Federal deu por encerrado o caso com somente 20 pessoas indiciadas. A tradicional lerdeza da Justiça fez com que os crimes prescrevessem e ninguém foi punido.

O gerente de Loterias da Caixa em 1989, Juarez José de Lima, garantiu à época que o escândalo não chegou a abalar a loteria. Mas os tempos áureos do jogo jamais voltaram, seja pela descrença de que seja 100% limpo para os mais antigos ou a rivalidade com outras loterias, como Loto e Sena, para os mais jovens.


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