PARABÉNS, CAMPEÃO!

 

 


Haroldo, uma lenda no atletismo pernambucano e nacional (Divulgação)


 

CLAUDEMIR GOMES



 

As cinco batidas cadenciadas e uniformes do velho relógio quebram o silêncio do quarto. Da janela contemplo os raios solares transformando a imensidão do mar num grande espelho d’água. Contemplar o esplendor da aurora é um presente dos céus. O despertar da cidade segue uma liturgia que se adapta às mudanças do tempo: os primeiros corredores dividem o calçadão da praia com os carroceiros que trazem equipamentos e mercadorias para montarem as barracas (tendas comerciais). Todos se conhecem, mas poucos se falam.

Com disciplina espartana e pontualidade britânica, passos largos e cadenciados, como as batidas do relógio, um senhor chega no calçadão, falando como se estivesse marcando o tempo que levou para cobrir os 100 metros que separam sua casa, da Avenida Boa Viagem, sua atual pista de treino e trabalho. Os primeiros alunos do dia lhe aguardam.

Haroldo Paulo – 1,87m de altura – diz que a idade já subtraiu uns 3 cm de sua estatura, mas não arrefeceu em nada seu amor pelo atletismo. Por imposição de algumas comorbidades, não corre, mas repassa todos os conhecimentos que lhes levaram a figurar na elite do atletismo brasileiro e sul-americano nos anos 80 do século passado.

Em 1979, o jovem atleta Haroldo Paulo Cruz deixou o Recife para correr atrás do seu sonho: se tornar atleta profissional. Passou a integrar o time do São Paulo, e logo se viu treinando com Joaquim Cruz, Zequinha Barbosa, Aguiberto Guimarães. A elite do atletismo brasileiro, da qual o pernambucano fazia parte, colecionou vários títulos nacionais, sul-americanos e teve em Joaquim Cruz, o grande destaque ao conquistar a Medalha de Ouro nas Olimpíadas de Los Angeles. Haroldo foi um dos melhores corredores dos 800m numa geração de ouro. Isto é fato. E contra fatos não existem argumentos. Haroldo Paulo Cruz adotou a praia de Boa Viagem como seu pedaço de chão. Embora seu currículo seja emoldurado por uma das histórias mais brilhantes do atletismo pernambucano, se tornou invisível para aqueles que estiveram à frente do desporto no Estado. Sob alegação de que era muito reivindicador, sempre foi preterido. Dessa forma a praia se tornou sua área de fuga, e de sobrevivência. Recentemente, a Federação Pernambucana de Atletismo lhe prestou uma homenagem. Com bastante atraso, diga-se de passagem, fez justiça a um dos maiores atletas do Estado. Haroldo Paulo Cruz não se conteve. Seu sorriso lembrou o daquele jovem ao subir num pódio, numa competição nacional, pela primeira vez, em 1980. Seus olhos brilhavam como os do menino que voava na prova dos 800m. No dia seguinte à homenagem, seus alunos não escondiam o orgulho que tinham pelo mestre. Os praticantes do  vôlei master festejaram o que chamaram de “justiça”. E até os coroas do dominó, onde Haroldo também é craque na batida do tabuleiro, aplaudiu a homenagem.

Aquele reconhecimento era aguardado por Haroldo como uma medalha de ouro. O velho relógio avisa, com sua engrenagem ruidosa e as batidas compassadas, que são 19h. Olho da janela e observo aquele senhor negro, corpo esguio, retornar para casa com os passos largos e cadenciado, sempre com a cabeça baixa. Cumpriu aquela distância dos 100m, que separam sua casa, do calçadão, várias vezes ao dia. Parabéns, campeão!

 

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