O poderoso chefão 'ajuda' o 'técnico' a escalar a Seleção Cacareco



A Seleção Cacareco – assim era chamada a Seleção Pernambucana – preparava-se para estrear no Campeonato Sul-Americano Extra realizado em 1959, em Guayaquil, no Equador. Os pernambucanos representavam o Brasil. O adversário era o Paraguai. Jogo marcado para um sábado, à noite. Como em qualquer estreia havia muita ansiedade entre os jogadores, todos ávidos por vestir a camisa canarinha. O técnico Gentil Cardoso como bom militar, pois era suboficial reformado da Marinha, depois de ter passado pela Aeronáutica, já tinha feito a cabeça dos seus comandados, dizendo-lhes que deveriam se sentir honrados, com o privilégio de representar o País no exterior.

Perto da hora do jogo há uma reunião para definição do time que vai entrar em campo. O Plano Paulo Machado de Carvalho havia dado certo um ano antes na Suécia, com a conquista da Taça Jules Rimet, e passara a ser uma norma na Seleção Brasileira. A equipe nacional não era mais escalada por um só homem, mas por um grupo, chamado de Comissão Técnica, o que se constituía numa grande novidade, na época. No caso da Cacareco faziam parte da Comissão, o técnico Gentil Cardoso, o preparador físico Jair Raposo, o médico Laudenor Pereira, o chefe da delegação, Rubem Moreira, e o administrador Jaime de Brito Bastos, apelidado de Jaime da Galinha.


A contragosto, o técnico Gentil Cardoso recebia pitacos de Rubem Moreira 

Com seu habitual jeito de mandão, tipo os antigos coronéis do Interior, Rubem estava num pé e noutro para dar seus pitacos no time, ainda mais porque era conhecida por todos a preferência que o treinador tinha por alguns jogadores, principalmente do seu clube, o Santa Cruz.

Afobado, como sempre, o cartola foi logo pedindo pressa.

– Tem que ser rápido, Gentil – determinou o Poderoso Chefão para não dar chance ao treinador de, com sua lábia, enrolar os demais componentes da CT.  

– Goleiros temos Waldemar e Walter...

Gentil nem completou a frase. Rubão foi logo trovejando:

– Não vai querer botar Walter, não é Gentil? Joga Waldemar – decidiu o chefe da delegação

 Não houve nem tempo para os demais componentes da Comissão opinarem. O goleiro do Náutico, que, aliás, tinha a preferência da torcida, já tinha comido de coco, na disputa com o do Santa Cruz, depois desse veredito do homem que mandava em tudo. E s pressão continuou:  

– Vamos ao lateral (naquele tempo, apenas o direito era chamado de lateral, já que o outro tinha a denominação de médio esquerdo por alinhar-se na linha média também chamada de intermediária).

– Geroldo e Zequinha...Vai Geroldo – disse o técnico, provocando a reação do ‘democrático’ Rubão, que perguntou em tom ameaçador.

– Como?

– Não, Zequinha, Zequinha – consertou imediatamente o acossado Gentil Cardoso, que prosseguiu:

 – O zagueiro central é meu capitão, grande jogador de futebol, Edson.

 Dessa vez não houve contestação. Rubem balançou a cabeça afirmativamente, e os outros aprovaram. Também, de que adiantaria votarem contra, se o ‘dono’ da Seleção havia concordado?

–Como centromédio – continua o treinador – tenho que colocar Clóvis, jogador técnico, de muito potencial. O médio esquerdo é Givaldo, jogador muito agressivo, bom marcador. Para volante temos Biu e Zé Maria...

 Nem conseguiu dar prosseguimento à sua reverberação porque o chefe entrou em cena outra vez.  

– Quem você escala?]

 Gentil, hesitante, começou a explicar, ou melhor, tentar explicar: 

– Pelos últimos treinos eu tenho que preferir...

Novamente o técnico teve sua explanação interrompida.

– Não tem que preferir porra nenhuma, é Biu. E vamos agora ao meia armador – berrou Rubem Moreira.

Gentil, que gostava de mostrar erudição, empulhou o cartola:

– É o nosso grande sprinter.

O técnico referia-se a um carro muito veloz e bastante valorizado da Mercedes Benz, deixando o comandante a ver navios.

– É o que rapaz? – perguntou Rubem meio sem graça.

– Geraldo – respondeu o treinador, sem maiores delongas, com a aprovação de Rubão.

Os outros componentes da Comissão Técnica só faziam ouvir e balançar a cabeça afirmativamente. Vem o ataque, e Gentil, fugindo à regra, começa a escalar pela ponta esquerda.

– Por que não o ponta direita logo? – contraria-se Rubão.

– Calma – pede Gentil – vou jogar pela esquerda.

 E vai logo declinando a linha, como se dizia, mas de trás pra frente: Elias, Zé de Melo, Paulo. Faltava o ponta direita.

– Tenho Tião e Traçaia – disse o treinador.

 Adivinhando sua intenção, Rubão interveio com uma ameaça:

– Se botar Tião, eu passo um telegrama pra CBD (Confederação Brasileira de Desportos, hoje CBF) e mando buscar outro técnico.

Gentil tomou um susto, mas logo desmanchou-se em amabilidades:

– Vou botar Traçaia, que é meu garoto, jogador que eu fiz. O senhor está nervoso, presidente? Estou apenas brincando.

Poucas horas depois dessa tortura imposta ao técnico Gentil Cardoso, a Cacareco entra em campo, e derrota o Paraguai por 3 x 2.

Mas antes do jogo, ainda no vestiário, o treinador tem o cuidado de puxar de uma valise uma bandeira do Brasil, fazendo uma curiosa advertência aos jogadores:

– Essa bandeira não pode perder nem para o Náutico, nem para o Bangu.

É que a camisa da Seleção Paraguaia é vermelha e branca e tem listas verticais, como as dos dois clubes citados por Gentil.




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