Temporal parou o jogo e Náutico voltou a campo no amanhecer


O time do Náutico tinha sido montado com jeito de seleção. Era o sonho de Eládio de Barros Carvalho, o eterno comandante. Fazer do Náutico um time forte. Grande, o Náutico já era como clube. Mas urgia fazer do clube alvirrubro um time também valoroso, vencedor. Um ganhador de títulos. Um time glorificado como seus mais próximos rivais, o Sport e o Santa Cruz.

Era o começo dos anos 50. O Náutico ocupava a quarta posição no ranking estadual, atrás de Sport, Santa Cruz e até do América. Tinha conquistado apenas três campeonatos até então. O primeiro, em 1934, o de 39 e, por fim, o de 45. Muito pouco. E em todos eles a disposição amadorística que conduzia os destinos e norteava os dirigentes timbus daqueles tempos. Tudo bem de acordo com o sentimento do mundo do pós-guerra. Um tempo ainda romântico nos domínios e nos gramados do futebol. O profissionalismo só iria vingar para valer no Brasil, depois da experiência amarga de 50. Após o Maracanazo de julho de 1950, o jogo que haveria de mudar a face do nosso futebol.

O time do Náutico vinha sendo montado a capricho. Começou com a aquisição, no final da década, de jogadores que eram destaque ou vinham despontando em outros clubes da cidade ou nas disputas suburbanas e em gamados do interior. Para a formação de um grande time, impunha-se como medida imprescindível a contratação de um treinador vitorioso. O escolhido então foi Palmeira, bicampeão em 46-47 dirigindo o Santa Cruz.

MONTAGEM DA EQUIPE

Palmeira, o ex-árbitro José Mariano Carneiro Pessoa, também ex-jogador no tempo do amadorismo, zagueiro do modesto Encruzilhada, time de vida breve e pouca história para contar, foi montando pacientemente a equipe, seguindo o modelo sonhado por Eládio. Na formação da zaga, o veterano Sidinho, lateral-direito, campeão pelo Santa Cruz no já distante ano de 1940, e o central Lula, laureado havia pouco, campeão pelo Tacaruna, na disputa do campeonato do subúrbio.

Para a linha média, Dico, volante pela direita, nos Aflitos desde os tempos do infantil, já há alguns anos no time de cima, e, pelo outro lado da cancha, vindo do interior, o lateral Jaminho, campeão no futebol do Agreste, na cidade que lhe serviu de berço, em sua Limoeiro.

Para a linha de frente, a aquisição de dois atacantes que eram o destaque no ataque do Sport, bicampeão de 48-49: Carmelo, ponta-direita, e Amorim, comandante do ataque, este um artilheiro por vocação. Os dois ex-rubro-negros vinham se juntar a Ivanildo, o ponta de lança, egresso do futebol do interior, da cidade de Garanhuns. 


E, para dar o toque de experiência ao time, e o verniz do brilho técnico que não deve faltar a uma grande equipe, o repatriamento de quatro ex-alvirrubros que tinham se mandado nos últimos tempos para o Rio, a Capital Federal, e agora retornavam como se tivessem saído para um estágio em centro mais adiantado: o goleiro Vicente, seis anos seguidos, de 1944 a 46, titular no América da Cidade Maravilhosa, Gilberto, campeão nos Aflitos em 1945, também efetivo no eixo da linha-média no time dos diabos rubros, e a ala esquerda Alcidésio e Zeca, meia e ponta, revelados nos juvenis, nos Aflitos, nos meados da década e que agora se juntavam de novo em Rosa e Silva, para encher a torcida alvirrubra de alegria com um futebol de primeira e muitos gols. Alcidésio passou também pelo América do Rio e estava, na ocasião, em um time menor, o Madureira; Zeca cumpria a condição de reserva no Fluminense.

EXCURSÃO AO NORTE

É esse time, com pinta de seleção, que o treinador Palmeira vai escalar para a estreia de uma excursão caprichosamente planejada, iniciada no Norte e prevista para atravessar a fronteira, levando pela primeira vez um clube nordestino a se exibir no exterior.

Isso aconteceu em abril de 1950, a um mês e meio para o início do campeonato estadual. O Náutico se preparava para o grande salto que iria lhe levar ao tricampeonato estadual em 1952. E, de quebra, à hegemonia do futebol em Pernambuco em toda primeira metade dos anos 50.

 O jogo de estreia da excursão e do time, do goleiro ao ponta-esquerda pela primeira vez juntos numa partida, aconteceu em Belém do Pará: Náutico 3x1 Tuna Luso. O time: Vicente, Sidinho e Lula; Dico, Gilberto e Jaminho; Carmelo, Ivanildo, Amorim, Alcidésio e Zeca. Estes onze jogadores estariam juntos, com uma ou outra substituição eventual, o tempo todo, no correr da excursão, em Belém, Manaus e Macapá, nos jogos do exterior em Paramaribo, na Guiana Holandesa, e no retorno ao Brasil, no correr do Campeonato Pernambucano, até a conquista do título, em janeiro do ano seguinte.  

Em território brasileiro, depois da auspiciosa estreia, a trajetória vitoriosa do time alvirrubro foi de chamar a atenção. Empate com o Paysandu ainda em Belém, (1x1), e cinco vitórias seguidas: Remo (6x2), e passando a jogar no Estado do Amazonas, em Manaus, América (3x2), Fast (9x4) e Nacional (3x2 e 4x2).

Foi quando, antes de seguir com destino a Paramaribo, o time foi convidado para se exibir em Macapá, a capital do então Território do Amapá. Jogo programado para o 1º de Maio, data dedicada ao trabalhador no mundo inteiro. Era comum naquele tempo incluir nas festividades do dia dedicado ao trabalhador, um jogo de futebol de portões abertos. A velha e surrada política do pão e circo, sucesso aqui e alhures, deixada por fim de lado, porque não há como enganar tantos o tempo todo e por tanto tempo.

TEMPORAL NO AMAPÁ

No Dia do Trabalhador, em Macapá, o time seguiu sua marcha vitoriosa: Náutico 1x0 Seleção do Amapá.  Em que pese o placar parcimonioso, o time mais uma vez deu um show. E foi tão empolgante a exibição dos pupilos de Palmeira, que o inevitável convite para um novo jogo foi feito à chefia da delegação. Convite feito e aceito na hora. Mais dinheiro no caixa. Futebol profissional vive disso.

Um problema: o 1º de Maio daquele ano tinha caído numa segunda-feira, e a delegação estava com a viagem programada pela Cruzeiro do Sul, com destino a Paramaribo, para a quarta, logo cedo da manhã. Apenas uma vez por semana saía avião do território, com destino às Guianas.

A equipe alvirrubra antes  de sua estreia no Amapá

Um outro jogo só era possível assim, na terça-feira. Melhor que fosse à noite, para permitir um tempo mais prolongado de descanso aos jogadores dos dois times. Foi o que ficou combinado. No gramado, no dia seguinte, na terça-feira à noite, outra vez Náutico e a Seleção do Amapá.

Apesar da boa exibição – não era mais novidade para ninguém, a cada jogo o time ganhava em entrosamento, suas linhas se ajustando na formação de um conjunto harmonioso –, o placar do segundo jogo parou num apertado 2x1, gols da dupla Ivanildo e Amorim, os artilheiros do time. 

No intervalo, os dois times recolhidos aos vestiários, caiu um toró daqueles que só costuma ocorrer na região amazônica. O campo ficou inundado. Futebol não era mais possível naquela noite diluviana.

JUIZ ENCERRA A PARTIDA

O árbitro pernambucano Lêucio de Souza Leão, que acompanhava a delegação, como era costume naquele tempo, cada time que viajava levava por via das dúvidas um árbitro de sua cidade, decidiu: o jogo estava encerrado. Jogadores, titulares e reservas, o treinador Palmeira, e os demais membros da delegação retornaram ao hotel.

Uma passagem rápida pelo restaurante para uma refeição frugal, como manda o figurino depois da correria de um jogo de futebol. Todo mundo depois se recolhendo aos apartamentos, para o descanso e as últimas providências no preparo da bagagem. 

Acontece que os promotores do amistoso não concordaram em pagar integralmente, como deviam, a cota do jogo. Pagar por inteiro por um jogo que foi jogado somente pela metade? De jeito nenhum... A delegação alvirrubra não abria mão de receber a cota a que tinha direito.

A torcida, que tinha pago para ver um jogo de 90 minutos e só tinha visto 45, por sua vez, estava exigindo o resto que faltava. O jogo todo ou o dinheiro de volta. O jeito então era jogar o segundo tempo no dia seguinte. Mas tinha a hora da saída do avião para complicar.
A aeronave tinha hora marcada para levantar voo. Mas deram um jeito. Brasileiro é fogo! O horário foi alterado. A saída do avião passou para as 8h30, uma hora depois da hora marcada. Não tinha outro jeito. Não havia outra solução. E o segundo tempo, para tudo dar certo, foi marcado então para cedo da manhã, começando às sete da matina.

O JOGO MAIS CEDO DO MUNDO

Foi assim que o Náutico entrou para a história, como o time que jogou futebol a sério mais cedo da manhã em todo o planeta. Sete horas da manhã! Jogo de portões abertos, estádio lotado. Não se trata de jogo de manhã ou em plena madrugada pela televisão, por causa da diferença do fuso horário. Não é isso. É jogo cedo da manhã, mesmo. Não há registro de jogo mais cedo em todo o mundo, em qualquer tempo.

O time do Náutico marcou mais dois gols no jogo do alvorecer. Placar final: Náutico 4x1 Seleção do Amapá. Amorim, outra vez, e Zeca, o ponta-esquerda, foram os autores dos dois gols matinais. São eles também recordistas. Jogadores a marcarem os gols mais cedo do dia na história do futebol mundial.        
  
Por Lucídio José de Oliveira, autor do livro O Náutico, a bola e as lembranças



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