Bola, Frevo e Passo (3)



Bicampeão pernambucano em 1946/47, o Santa Cruz lutava pelo segundo tricampeonato de sua história, depois de ter dominado o triênio 1931/32/33. Em plena vigência do campeonato de 1947, em determinado momento, o Santinha  afastou-se da disputa por se sentido prejudicado pela arbitragem numa partida contra o Náutico.

A decisão extrema foi tomada pelo Conselho Deliberativo contra o voto de um conselheiro, que, por isso mesmo renunciou ao seu assento naquele órgão: Lourenço da Fonseca Barbosa, o célebre compositor Capiba, autor de músicas inesquecíveis, como Maria Betânia, e de um sem-número de frevos. Ele não via razões plausíves para seu clube de coração tomar uma medida tão radical.

Ainda quando morava em Campina Grande, para onde se transferiu com a família, saindo de Surubim, onde nasceu em 28 de outubro de 1904, Capiba já torcia pelo Santinha. A simpatia começou quando ele tomou conhecimento da histórica vitória do Tricolor, em 30 de janeiro de 1919, sobre o Botafogo de Futebol e Regatas por 3 a 2, no primeiro triunfo de uma equipe do Norte/Nordeste sobre um time do Sul. Em Campina Grande mesmo, fundou com Hilton Vieira, um ex-jogador coral, que tinha ido morar na Rainha da Borborema, um time com o nome de Santa Cruz, que não durou muito tempo.

EXALTAÇÃO AO SANTA CRUZ

Ao vir para o Recife, após ser aprovado em 1930 num concurso do Banco do Brasil, Capiba aproximou-se de vez do clube de sua paixão, com o qual manteve uma estreita relação até morrer, em 31 de dezembro de 1997.

Porém, depois do episódio de 1948, nunca mais quis ser conselheiro. Vale salientar que por causa do afastamento do campeonato, o Santa foi suspenso por 60 dias pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos), e assim o sonho do tricampeonato desmoronou-se. Com isso Capiba, um tricolor apaixonado, teve que arquivar por tempo indeterminado uma música que estava compondo, justamente para saudar seu clube de coração, que ele esperava fosse tricampeão naquele ano tão tumultuado.. 

Capiba esperou dez anos com sua marcha-exaltação


Terminada a suspensão, o Santa Cruz voltou às atividades normais, todavia, já sem condições de alcançar o desejado Tri. Daí para frente, a cada ano, o compositor, que desde 1934, quando saboreou seu primeiro sucesso no Carnaval, com o frevo-canção É de Amargar, (RCA nº 33.752), gravado por Mário Reis, desfrutava de prestígio nas hostes musicais do Recife, vislumbrava a possibilidade de soltar sua louvação ao Tricolor.

Mas nada disso. A Cobra Coral amargou um longo jejum, só voltando a fazer a festa ao conquistar seu primeiro título de supercampeão, o de 1957, ou seja, dez anos depois daquele incidente, já que a decisão do supercampeonato aconteceu no ano seguinte, ou seja, 1958.

Finalmente, o genial Capiba pôde homenagear seu Santa Cruz, com a marcha-exaltação O Mais Querido, até hoje a música mais cantada ou executada nos momentos de euforia dos torcedores corais, tendo mesmo se transformado numa espécie de hino do clube.

O certame de 1957 – cada um dos três grandes, Náutico, Santa Cruz e Sport, ganhou um turno, daí a realização do supercampeonato – como já foi dito, passou de um ano para outro, e só em 1958, portanto, Capiba viu sua composição explodir na voz de outro monstro sagrado da cena musical pernambucana, o alvirrubro Claudionor Germano (disco Mocambo nº 15.216/B):

Santa Cruz
Santa Cruz
Junta mais essa vitória
Santa Cruz
Santa Cruz
Ao teu passado de glória

És o querido do povo
O Terror do Nordeste
No gramado
Tuas vitórias de hoje
Nos lembram vitórias
Do passado
Clube querido da multidão
Tu és o supercampeão

Onde se lê super, antes lia-se tri. Em 1976, com o segundo super, Capiba alterou para “Tu és o bi-supercampeão”, porquanto, a frase melódica permitia. Mais tarde, em 1983, com na conquista de outro supercampeonato, a própria torcida encarregou-se de substituir o bi pelo tri.

Possuidor das cadeiras de número 224 e 225 no Estádio José do Rego Maciel, Capiba nos últimos anos de sua existência havia deixado de frequentar o Arruda. Com problemas cardíacos, procurava evitar as emoções causadas pelo fantástico mundo da bola, mas não esquecia o Santa. Sempre que este jogava, colocava uma bandeirola com suas três cores prediletas na janela. Vários objetos seus foram doados, ainda em vida, ao museu tricolor, como a primeira carteirinha de sócio.

Em 1990, Capiba voltou a homenagear seu Santa Cruz, com outro frevo-canção, o Se tu és tricolor, que não teve nem de longe a repercussão do primeiro, mesmo porque as rádios pernambucanas passaram muito tempo evitando tocar frevo. Eis a letra:

Se tu és tricolor
Que Deus te abençoe
Se não és tricolor
Que Deus te perdoe
O Santa tem a fibra
Dos Guararapes
Por tradição
É o mais querido
E sempre será

O clube da multidão

NELSON DE TODAS AS CORES

O título de supercampeão de 1957 conquistado pelo Santa Cruz também foi exaltado pelo venerado maestro Nelson Ferreira, como Capiba, torcedor do Tricolor, só que bem menos ardente que seu colega. Antes de homenagear o time de seu coração, Nelson fizera frevos para o Náutico e o Sport, os dois tradicionais adversários do Santa.

Aliás, como foi dito na abertura desta série, em 1941, Nelson compunha, juntamente com Ziul Matos, gravado por Almirante, Qual é o escore, meu bem?, no qual o autor mostrava seu espírito conciliador, procurando contentar a todos.

Seja da cobrinha
Seja do timbu
Ou seja do leão
Eu não faço questão
Quero, meu benzinho
Que neste Carnaval
Você torça um bocadinho
Pelo meu coração

No campo do amor
Pelo seu coração
Serei bom jogador
Em qualquer posição


Somente eu lhe peço
E é bem pouco o que desejo
Cada gol que eu fizer
Você paga com um beijo


A vibração pela conquista do Super, num ano em que o Santa também fez a festa entre os juvenis e os aspirantes (categoria interrmediária entre  o juvenil e o profissional) fez Nelson compor o frevo-canção Supercampeão, gravado em 1958, na voz de Claudionor Germano, em disco da pernambucana gravadora Mocambo, com acompanhamento da orquestra de frevos do próprio Nelson Ferreira. 

O sempre alegre César Brasil, com Ivanildo Souto, Pelágio Silveira, Sherlock, Rubem Moreira, Aristófanes de Andrade e Antônio Cascão. Tricolor autêntico, César participou do disco de Nelson Ferreira enaltecendo o supercampeonaro


Antes da música propriamente dita há um texto falado em que os locutores César Brasil e Rosa Maria, tricolores, revezam-se, declinando a escalação da equipe supercampeã, emendando com uma convocação ao na época chefe de torcida, Anísio Campelo, seguindo-se o grito de guerra, que era comandado pelo próprio Anísio:

“Aníbal, Diogo e Sidney; Zequinha, Aldemar e Edinho; Lanzoninho, Faustino, Rudimar, Mituca e Jorginho! Em saudação a estes supercampeões de 1957, o comandante Anísio Campelo, desfraldando a bandeira gloriosa das Repúblicas Independentes do Arruda, dá o seu grito de guerra. Atenção, tricolores: ‘Um, dois, três, quatro, cinco, seis., torcemos com prazer, queremos a vitória, nosso lema é vencer. Uah, uah, uah, Santa Cruz’”.

Aqui entra a letra:

Vamos cantar com toda emoção
Um, dois, três, quatro, cinco, seis
Saudando a faixa de supercampeão
A que fez jus o mais querido Santa Cruz

Foram três as vitórias colossais
Juvenis, aspirantes, profissionais
Repúblicas Independentes do Arruda
Pernambuco vos saúda
Anísio, chama a torcida
Tudo pelo Santa, nosso sangue e nossa vida

Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Torcemos com prazer
Nosso lema é vencer 

O Samta Cruz de 1957 no primeiro supercampeonato


A verdade é que Nelson não era um tricolor tão apaixonado como Capiba, que não se imaginava compondo qualquer coisa para festejar os ‘inimigos’.

Sua estreia nessa mistura entre a sombrinha do frevo e a bola deu-se no já longínquo 1936, quando compôs, em parceria com Sebastião Lopes, o frevo-canção Pelo Sport Tudo, que se popularizou como Moreninha. Assim como a marcha-exaltação de Capiba, essa criação rubro-negra do tricolor Nelson Ferreira, ainda hoje faz as vezes, para a torcida, de hino oficial do Leão. Mais uma vez o alvirrubro Claudionor Germano na jogada:

Moreninha que estás dominando
Desacatando agora pelo entrudo
Chegou a hora de gritares loucamente
Hip, hip, hurrah, pelo Sport tudo

Vejo no batom dos teus lábios
E no teu cabelo ondulado
As cores que dominam altaneiras, oh morena
O meu glorioso Estado

E passado o Carnaval
Para que não te falte a boa sorte, dirás
Na minha vida hei de fazer eternamente
Tudo, tudo pelo Sport 

Mesmo torcendo pelo Santa, Nelson Ferreira enalteceu o Sport e o Náutico


Em 1967, com o Náutico em pleno apogeu, a dupla Ziul Matos e Nelson Ferreira voltou a produzir um frevo-canção, feito especialmente para ser gravado pelo pai-de-santo Edu. O Alvirrubro havia sido pentacampeão, e o conhecido macumbeiro dizia-se responsável pelo feito, pois estava sendo sempre requisitado pelo técnico Duque para fazer uma ‘limpeza’ no elenco. Eis a música:

Dei o bi
Dei o tri
Dei o tetra
E o penta chegou
Ene-a-u-tê-i-cê-o, gol
É gol, é gol, é gol
O vermelho é bravura e destemor
O branco é paz e é amor
Mas as duas cores juntas
Têm uma nova dimensão
Atenção, futebol do Brasil
Ene-a-u-tê-i-cê-o
Náutico, Náutico
Náutico é pentacampeão


Nelson Ferreira fez dois frevos-de-rua na temática futebolística. Num, homenageou ainda o Náutico, com o Come e Dorme, em 1950. Teria sido uma alusão ao time de reservas alvirrubro, que era muito bom, mas os jogadores não tinham vez na equipe de cima porque os titulares, sabendo o que lhes poderia ocorrer, procuravam não dar-lhes brecha. Dizia-se, então, que aquela turma só fazia comer e dormir; jogar que é bom, nada, O outro frevo-de-rua é Casá, Casá, do Sport, tendo sido composto pouco tempo depois. do Come e Dorme. Ambos continuam em plena evidência.

Sobre o Casá, Casá, o engenheiro aposentado Eunitônio Pereira, autor do hino oficial rubro-negro, – o inicialmente frevo-canção Sport, uma razão para viver – filho do ex-prefeito Antonio Pereira, me prestou certa vez este depoimento:

“Eu era garoto. Nelson toda quarta-feira ia almoçar em minha casa. Ele tinha feito o Come e Dorme para o Náutico, então pedi-lhe que fizesse um frevo para o Sport também, se não eu não falava mais com ele. Alguns dias depois, ele criava o Casá, Casá”.

LENIVALDO ARAGÃO


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