O gol 1.000 de Pelé e a angústia de Andrada, segundo seu reserva


 

Com a morte aos 80 anos de idade do argentino Andrada, o goleiro do milésimo gol de Pelé, aquele fato histórico para o futebol mundial volta a ser lembrado, com um importante artigo do goleiro reserva do Vasco da Gama, o catarinense Valdir. Recordemos:
  
PERNAMBUCO PRESENTE
O cenário do milésimo gol de Pelé, marcado na noite de 19 de novembro de 1969, tinha algum viés pernambucano. O árbitro Manoel Amaro de Lima nascera em Alagoas, porém, há muitos anos havia fixado residência em Pernambuco, contratado pela Federação Pernambucana de Futebol. Pertencia ao quadro da arbitragem nacional e era também professor de educação física.
O lateral esquerdo do Santos era Rildo, recifense do bairro de Santo Amaro, saído do Sport, quando ainda era juvenil, para defender o Botafogo no tempo de Nilton Santos, Garrincha, Didi, Zagallo e outras feras. De General Severiano mudou-se para a Vila Belmiro.
No ataque do Vasco da Gama, o time que levou o milésimo, estava o atacante Adilson, irmão de Almir. A exemplo do Pernambuquinho, Caveirinha, como é conhecido na intimidade, saíra da Ilha do Retiro para São Januário antes de se profissionalizar.
Reencontro no Maracanã para reviver a cena em filmagem (superesportes.com.br)

E como reserva de Andrada, o goleiro argentino que entrou para a história, a contragosto, por ter levado o tal gol, encontrava-se o catarinense Valdir, que naquele ano mesmo, tinha vivido um curto período de empréstimo no Sport.
E ainda existiam o atacante Acilino, que mais tarde defenderia o Sport, e o lateral esquerdo Eberval, que o mecenas James Thorp traria para o Santa Cruz.

A PARAÍBA ENTRA NA RODA

Época do Nacional, como era chamado o hoje Campeonato Brasileiro.  O Santos tinha jogado na Ilha do Retiro contra o Santa Cruz. Goleada de 4 x 0, com Pelé fazendo dois gols e atingindo a marca de 998.
O próximo compromisso pelo Nacional seria em Salvador, contra o Bahia, do goleiro caruaruense Jurandir, ex-Central. Mas de última hora acertou-se um amistoso com o Botafogo de João Pessoa, cujos jogadores receberiam as faixas, como campeões paraibanos. A Paraíba preparou-se para ‘sediar’ o milésimo gol do Rei, pois a diferença entre as equipes era enorme.
Pelé marcou o gol de número 999 e logo passou a jogar de goleiro, posição na qual estava acostumado a quebrar o galho. O contrato do jogo previa sua presença até o fim, porém, a direção santista concluiu em dado momento que não seria justo que o milésimo surgisse numa cidade que não estava no roteiro oficial, tendo entrado de última hora. Daí, o goleiro Agnaldo ter fingido uma lesão, sendo substituído pelo Rei.
Os baianos preparam-se para festejar o gol, mas ficaram frustrados com o 0 x 0 entre Bahia e Santos. A festa ficou para o Maracanã. Vitória do Santos sobre o Vasco por 2 x 1.
 
Andrada, Pelé e Manoel Amaro novamente juntos (Terceiro Tempo Uol)
COM A PALAVRA O GOLEIRO RESERVA
Escreveu Valdir (Appel), na época goleiro reserva do Vasco, em “Na Boca do Gol”, o primeiro dos seus livros:

“O gringo não aguentava mais as sacanagens do Moacir e do Buglê, e à medida em que se aproximava o jogo contra o Santos pelo campeonato brasileiro (na época, chamado de Roberto Gomes Pedrosa), o coro que agourava a marcação do milésimo gol do Pelé em cima do Vasco engrossava. Na concentração, nas viagens e após os jogos do Peixe, sempre alguém chegava com um jornal para mostrar a evolução dos gols de Pelé.
O reserva e hoje escritor Valdir (historiadordofutebol.com.br)


Na verdade, esta “previsão” da boleirada não tinha respaldo. O Santos enfrentaria ao longo do campeonato e em confrontos amistosos, equipes teoricamente frágeis, e já chegaria no jogo contra o Vasco com a fatura liquidada. Era o que imaginávamos.

Mas, o tempo foi passando, e com a proximidade de novembro, o goleiro argentino naturalizado brasileiro começou a ficar preocupado.

Pelé chegou à marca dos 999, num amistoso contra o Botafogo de João Pessoa, na Paraíba. Depois, jogou parte do segundo tempo substituindo o goleiro Agnaldo, que simulou uma providencial contusão, impedindo assim que novas oportunidades de gol surgissem. Palco pequeno, poucos holofotes...

O gol poderia ter acontecido contra o Bahia, no estádio da Fonte Nova, mas um carrinho milagroso de um zagueiro do tricolor de aço impediu que a marca histórica fosse alcançada na boa terra.

Curiosamente, a providencial intervenção do jogador foi contemplada com uma estrepitosa vaia da sua torcida, que estava a fim de fazer a festa do Rei em Salvador.

No mesmo dia, jogamos em São Paulo. No avião da ponte aérea, Moacir falou pro Andrada: “Eu não falei que você levaria o milésimo? Tu achas que ele ia perder a oportunidade de fazê-lo no Maracanã? Tá tudo arranjado, Milongueiro!”.

Curtimos uma folga e nos reapresentamos em São Januário na terça-feira, quando realizamos leves preparativos rotineiros para o embate de quarta-feira.

A CONTUSÃO

A colina já estava às escuras quando Andrada, inexplicavelmente, caiu no gramado sentindo dores no tornozelo.

Perplexidade total. Minha e dos demais colegas. Pensei: vai sobrar para mim esta encrenca.

Na concentração da Lagoa, à noite, na ponta de uma longa mesa de jantar, os jogadores iniciaram as provocações pra cima do Andrada.
Toda hora alguém chamava o massagista Chico, pra renovar o gelo colocado no tornozelo do goleiro. Beneti insinuava que ele estava pipocando.
Adilson ia mais longe: “Hei, gringo! Tá com medo? Não tem problema: o Valdir joga, já entrou pra história mesmo com aquele gol contra. Este não vai fazer diferença!”.

O JOGO

Quarta-feira à noite, nos vestiários do Maracanã, Andrada submeteu-se a um teste, supervisionado pelo doutor Arnaldo Santiago. Era evidente o seu nervosismo.

Falou mais alto o profissionalismo; ele decidiu jogar. E como jogou! O clima no maior estádio do mundo era de festa: quase 70 mil pagantes, devia ter uns 30 mil a mais, entre autoridades e caronas.

Os dois times entraram em campo lado a lado, liderados pelos seus capitães, empunhando a bandeira brasileira.

Perfilados, ouviram o hino nacional.

No banco de reservas, ficamos admirados ao ver o diretor Iraci Brandão disfarçar, embaixo dos braços, uma camisa branca do Vasco com o número 1.000. Era mais um que torcia pelo milésimo acontecer naquela noite.

O jogo teve início e desde cedo ficou visível a falta de colaboração dos jogadores vascaínos: primeiro Beneti, abrindo o placar na primeira etapa; e principalmente o goleiro Andrada, que pegou tudo e fez a maior defesa que eu já presenciei no Maracanã. Pelé limpou a jogada pelo lado direito da grande área do Vasco. Andrada deu dois passos à frente, posicionando-se para defender um possível chute forte. O gênio meteu uma curva de fora para dentro, com o lado externo da chuteira, em direção ao ângulo superior direito da meta do arqueiro. Com um salto fantástico, Andrada saiu do solo para espalmar de mão trocada a bola que parecia inapelável.

No segundo tempo, o zagueiro René, para impedir o gol de Pelé, não teve dúvidas: antecipou-se ao atacante e fez contra (e de cabeça!) o gol de empate do Santos. Aqui não! Jogo que segue.

O PÊNALTI

O Vasco pressionou e o árbitro deixou de marcar um pênalti a nosso favor, gerando protestos de todo o time. Manoel Amaro mandou seguir a jogada e, no contra-ataque, não titubeou em marcar uma penalidade máxima aos 32 minutos, extremamente duvidosa, de Fernando em Pelé.

Afinal, o pernambucano Manoel Amaro também estava louquinho para entrar para a história e se imortalizar, às custas do Rei.

Bola na marca fatal. O público emudeceu.
Os jogadores do Santos se posicionaram no centro do gramado.

Pelé deu apenas três passos... e fuzilou, com perfeição, o arco do Andrada, que saltou como um felino para o canto esquerdo e passou roçando os dedos da luva na bola, que foi se aninhar no fundo do barbante, da baliza à esquerda da tribuna de honra do Maracanã. Seus punhos socaram o chão, inconformado por levar o gol que o colocaria para sempre na história do futebol mundial.

Logo ele, cujo maior desejo era entrar para o hall da fama como o melhor goleiro a vestir a camisa número 1 vascaína.

Pelé buscou a bola no fundo do arco e a beijou.
O jogo parou. O gramado foi invadido por uma legião de repórteres. Pelé dedicou seu gol às criancinhas, e foi carregado nos ombros dos companheiros. Chico vestiu a camisa do Vasco em Pelé que, com ela, deu a volta olímpica no gramado do Maracanã.

Após uma longa pausa para as comemorações, o jogo chegou ao final com poucas emoções. Aliás, tivéramos muitas para apenas uma noite.

CONSEQUÊNCIAS

Assim, naquela quarta-feira, entraram para a história: o milésimo gol de Pelé; e Andrada, que ganhou o título de O Arqueiro do Rei.

O atacante Acilino, do Vasco, mesmo derrotado, comemorou o seu aniversário.

O Dia da Bandeira passou em branco. E poucos deram importância à Apollo 12, que (dizem!) pousou no Mar das Tempestades, quando mais dois americanos (Paul e Ringo, quem sabe?) pisaram o solo lunar.

O árbitro Manoel Amaro declarou que já podia encerrar a carreira porque apitara o jogo mais importante do Século XX.

Chico conseguiu uma das três bolas usadas no jogo (a do milésimo gol, Pelé guardou!) e uma camisa 10 do Santos dadas pelo Rei, devidamente autografadas.

Hoje, o próprio Pelé ignora onde foi parar a camisa 10 do Vasco com o número 1.000.

O FILHO

Na comemoração dos 30 anos do milésimo gol, Pelé e Andrada reviveram no Maracanã aquele duelo. Pelé teve que repetir a cobrança do pênalti porque, na primeira, Andrada pegou.
Pelé se queixou: “Pô, gringo! É para repetirmos o lance!”. Andrada, muito sacana, emendou: “Tá difícil, amigo... Agora, eu já sei o canto que você vai chutar!”. Naquele mesmo dia, falei pro Andrada, no Rio: “Gringo, tu devias agradecer todos os dias: não por ter levado o milésimo gol, mas porque tu quase defendeste aquele pênalti!” “Como assim, Valdir?” “Tchê, aquele gol passa toda hora na televisão... magina o teu filho, em casa, lamentando:
Carajo, papá! No saliste en la película... Saltaste para el otro lado, mientras la pelota se fué para el lado opuesto”.

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