Gilberto Freyre e o futebol




O futebol, apesar de ter sido combatido, quando de sua implantação em Pernambuco e em todo o País, despertou, através dos tempos, o interesse de muitos intelectuais.
Atualmente comemora-se o centenário de um pernambucano de grandeza internacional. Trata-se do poeta João Cabral de Melo Neto, cuja família pelo lado paterno era ligada ao América Futebol Clube, pelo qual o intelectual e diplomata chegou a jogar.

Nem por isso deixou de defender o Santa Cruz, de sua mãe, Carmem, sob a desaprovação, não proibição, do pai, o torcedor alviverde Luiz Cabral de Melo. Isso aconteceu em 1935. Enxertando o Santinha, o vate ressurgente sagrou-se campeão, isso depois de ter sido o último colocado no mesmo campeonato pelo seu América. Tal dubiedade de participação era permitida.

Outro pernambucano de enorme peso intelectual, que gostava muito de futebol, era o sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre. É verdade que sua presença no terreno futebolístico era mais lírico. Torcedor do Sport Club do Recife conduzia-se com sobriedade, ao contrário de outra figura marcante, o dramaturgo e escritor Ariano Suassuna, também rubro-negro, do tipo ‘cheguei’.

"(Eu) Era considerado quase um fenômeno de agilidade" (Foto: Revista Algo Mais)


Em 1983, Gilberto Freyre me concedeu a seguinte entrevista:

Quando moço, o senhor praticou algum esporte? Se praticou, qual foi?
GILBERTO FREYREÉ claro que futebol, em menino. Eu era do time do então Colégio Americano, um dos bons times daqui. Eu era atacante, quebrei o braço lá, fui herói. Eu era tido como muito bom, um elemento leve e ágil, mas como era franzino, não era considerado dos melhores. Era preciso combinar agilidade com resistência, e eu, quando vinha um encontrão caía, como caí na vez em que quebrei o braço duma maneira desastrosa. Mas, pra você ver o elemento que eu era em futebol, meu apelido era “O Magro” ou “Palito”. Eu era magricelazinho, mas realmente muito ágil. Era considerado quase um fenômeno de agilidade, de modo que era considerado também um elemento valioso no meu time infantil. O Colégio Americano jogava muito com o Colégio Salesiano, eram rivais e eu já participei desses jogos e dessa rivalidade entre colégios. Agora, no que eu vim a me distinguir – eu fui por algum tempo menino de engenho, menino de engenho da família de minha mãe, Engenho São Severino, em Paudalho – foi na equitação. Aprendi e gostava de montar a cavalo e esse foi um dos meus esportes. Aí, mesmo no engenho, e também aqui perto do Recife, em Caxangá, banho de rio com natação. Foi outro dos meus esportes infantis.

Natação competitiva?
GILBERTO FREYRE – Apenas recreativa. Competitivo eu fui, devo dizer com certa imodéstia, brilhantemente, em ciclismo infantil. Havia já competições e em várias delas eu fui vencedor de provas infantis. O ciclismo teve uma fase muito brilhante em Pernambuco, com o chamado velódromo, onde não cheguei a correr. Agora, devo dizer que era, de fato, para minha idade, na minha categoria, campeão não só de ligeireza como de acrobacia. Eu fico besta de ver o que fazia acrobaticamente em bicicleta. Descia em planos inclinados, ladeiras... Comecei a jogar voleibol e basquetebol aqui também, no Colégio Americano, que na minha época foi realmente um colégio revolucionário em matéria de esportes ligados a colégios. Nâo havia praticamente esportes e ele foi o introdutor do voleibol e do basquetebol em Pernambuco. Estes foram meus esportes infantis. Eu não tive esportes de adolescentes, porque adolescente eu já não estava aqui. Muito cedo fui para os Estados Unidos e para a Europa. Aí é que tive outra fase de esportes, em nenhum dos quais eu me destaquei muito, nem em tênis nem em qualquer outro.

Em 1980, quando o Sport comemorava 75 anos de existência, o senhor foi agraciado com o título de “Leão de Ouro”, honraria concedida a uns poucos. Como o senhor se ligou ao clube?
GILBERTO FREYRE – É verdade, me distinguiram muito. Mas desde menino que sou leão por influência, acho, da família, que era toda do Sport. Eu fui sendo influenciado e me tornei torcedor do Sport. Como eu viajo muito não posso estar em ligações constantes, mas sou muito esportivo e gosto muito do Sport.

Como vê a Copa Brasil ou Campeonato Brasileiro, como fator de integração nacional?
GILBERTO FREYRE – Essa é uma pergunta difícil de responder, porque você vê tanta briga em futebol, que fica um pouco desanimado quanto a elogiar o que o futebol pode ser a favor da solidariedade entre Estados, entre as várias regiões do Brasil. Realmente, nós estamos atravessando uma fase um pouco triste, brigas nos próprios campos. É uma coisa nova pra mim, pois eu me lembro da minha meninice e não havia isso. Realmente, o futebol entusiasma, sempre entusiasmou muito, mas sem chegar a esses extremos de rivalidades briguentas. Mas de qualquer maneira o futebol tem sido muito útil para o Brasil, tem sido uma revelação de talentos esportivos, tem sido também uma revelação de capacidade do brasileiro de ser desportivo e isso conta a favor de um país. Eu acho os desportos de um país uma parte valiosa de sua cultura.

Essa violência não seria reflexo da tensão provocada pela crise que o Brasil atravessa?
GILBERTO FREYRE – É o reflexo, sem dúvida. Realmente, estamos vivendo uma crise tremenda. Eu até fico orgulhoso do Brasil em ver como o povo brasileiro está resistindo a essa crise. Nós estamos tendo grandes problemas de violência, inclusive violência nos jogos, violência nas ruas, assaltos como nunca tivemos tantos, violentos também, mas de qualquer maneira você vê o povo brasileiro reagindo à crise de uma maneira honrosa para o Brasil. Essa crise não é brincadeira. Eu fico besta de ver como certas famílias estão resistindo, podendo manter os filhos e mantendo até filhos em escolas. Eu considero verdadeiros heroísmos praticados pela classe média mais pobre do Brasil.

"O brasileiro recriou o futebol" (Reprodução internet)


Houve no futebol brasileiro algum craque que despertasse sua atenção?
GILBERTO FREYRE – Eu me lembro de meu entusiasmo pelo chamado Diamante Negro, Leônidas, que hoje está muito esquecido. Engraçado, o heroísmo em esporte, como é efêmero. Você fala hoje em Leônidas, quase toda a gente com quem você fala nele, não sabe quem foi Leônidas. É uma coisa que precisa ser escrita, uma boa história não está ainda escrita. Eu tive um amigo, você conhece, hoje infelizmente falecido, que era o Mário Filho...

Escreveu O Negro no Futebol Brasileiro...
GILBERTO FREYRE
– É, eu quis muito que ele escrevesse essa história. Eu lhe disse, eu escrevo o prefácio – como realmente escrevi –, vai ser um livro, eu estou certo disso, um livro-bomba mesmo. Mas precisava ser bem escrito, literariamente bem escrito, com fatos que não fossem contestados, porque na história de qualquer esporte há sempre dúvida sobre quem foi o maior nesse ou naquele jogo. Tem que ser apurada e não movida pelo entusiasmo de qualquer um por um herói. É um livro que deve fazer parte de uma grande história do futebol brasileiro. Porque a presença do negro do futebol brasileiro é qualquer coisa de notável. Você vê que várias modalidades de talento foram lideradas por brasileiros de origem negra. Ficou tudo abafado por Pelé, mas antes de Pelé houve vários jogadores realmente notáveis.

Qual a explicação para esse destaque do jogador negro?
GILBERTO FREYRE– A grande explicação é que o brasileiro recebeu o jogo inglês chamado “foot-ball” e toda terminologia em língua inglesa. Depois é o que brasileiro abrasileirou. Mas o brasileiro não abrasileirou somente a terminologia. O brasileiro recriou o futebol, e recriando o futebol, aproximou esse jogo – que para os ingleses era um jogo hirto, reto – de uma dança. O futebol brasileiro é realmente uma dança, com grande influência do samba. Você vê sua beleza, pois é um jogo que exercita muito a capacidade improvisadora do jogador. Vários especialistas, que às vezes têm tomado conta do futebol brasileiro e querem fazê-lo voltar a ser um jogo europeu, criticam seu estilo. Pra mim é uma virtude. O brasileiro adaptou o futebol à sua própria vocação para a dança, para o baile, para a agilidade nos pés e nas pernas.

Haveria um jogador que sintetizasse todas essas tendências?
GILBERTO FREYRE – Quem eu creio que foi um grande acrobata, o que é até um paradoxo, já que ele era quase aleijado, foi Garrincha. Você vê que Garrincha tinha momentos em que dançava mais do que Pelé. E dançava com as pernas tortas. Ele tinha lances de bailarino, eu acho que ainda não houve uma justa avaliação de Garrincha. Acho que é preciso, que haja uma grande história do futebol brasileiro, escrita por alguém que saiba escrever literariamente, que entenda o jogo e que se informe sobre fatos históricos, sobretudo, sobre essa transição. Um jogo que começou elitista. Os rapazes ricos que iam à Europa, trouxeram a novidade e só sabiam jogar imitando os ingleses, estes elitistas. Daí, o jogo numa transição magnífica que honra o Brasil, passa a ser um jogo quase contrário ao jogo originalmente inglês. Passa a ser um jogo de grande mobilidade. O jogo inglês é quase parado, paradoxalmente. Viva tantas combinações, que é um jogo de cooperação. Quase não admite a competição, enquanto o futebol brasileiro é competitivo e é aberto, permitindo improvisações. Com essa transformação, o vitorioso, o grande vencedor foi o Brasil, foi o povo brasileiro. É um jogo popular. Tudo está bem contido no caráter, no temperamento, nas vocações do brasileiro.

Como vê o futebol como veículo de entrelaçamento racial?
GILBERTO FREYRE – Eu acho que o futebol valorizou muito o negro. Você vê hoje Pelé disputado por brancas. Pelé hoje escolhe quem quiser entre brancas e grã-finas. Como é que se fez a carreira de Pelé? Fez-se através do heroísmo no futebol. Ele foi um herói do futebol brasileiro e congraçou muito o brasileiro branco como brasileiro de cor.

Qual o comportamento do torcedor Gilberto Freyre numa Copa do Mundo, por exemplo?
GILBERTO FREYRE – Ligo-me e vibro. Sofri muito com aquele caso espanhol (a eliminação do Brasil pela Itália), que pra mim se deve à inércia do encarregado do Brasil (Telê Santana).




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