A EXCURSÃO DA MORTE!

 Por MICHELL LAURENCE - Tags Causos do Futebol



Este causo real foi contado pelo jornalista Lenivaldo Aragão, no número 505, da revista PLACAR, de 28 de dezembro de 1979.


Tudo começou na madrugada do dia 2 de janeiro de 1943.

A Segunda Guerra Mundial está em seu pior momento.

O Brasil aderiu aos Aliados contra as forças do Eixo, e submarinos alemães rondam ameaçadoramente a costa brasileira.

Com as luzes apagadas, o vapor Pará, do Lloyd Brasileiro, zarpa do porto de Recife.

O vapor viaja em comboio protegido por dois navios da Marinha de Guerra.

Seus passageiros, temendo um ataque, trocam os camarotes pelo convés. Dormem em grupos, armados de facas e foices, com os salva-vidas à mão. Se os alemães atacarem vão encontrar resistência.

Chegada a Manaus. O de chapéu é o chefe da delegação, Aristófanes da Trindade. Ao seu lado, terno escuro, José Mariano Carneiro Pessoa, Palmeira, árbitro convidado

Os passageiros são os jogadores do Santa Cruz, de Recife, que saem em excursão pelo Norte do País para amealhar alguns trocados. O clube está em dificuldade financeira.

Dois dias depois o vapor atraca no porto de Natal, capital do Rio Grande do Norte.

Uma hora depois o time já está em campo no antigo estádio Juvenal Lamartine, onde derrota a seleção potiguar, por 6 a 0.

Os jornais no dia seguinte falam da Guerra, da grande vitória do Santa Cruz, mas principalmente elogiam a coragem dos jogadores que viajam em plena guerra, mesmo sabendo que uns 5 ou 6 dias antes, um submarino alemão tinha posto a pique o navio Araranguá, da Companhia Costeira de Navegação, no litoral de Sergipe.

O time viaja para Fortaleza, onde é recebido com grande festa e fica sabendo pelos jornais que Adolf Hitler pede que os italianos desocupem a Sicília.

 

Submarino alemão


No dia 10 de janeiro o Santa Cruz é recebido em Belém do Pará e ganha de 7 a 2 do Tranviário.

Mais uma vitória, por 3 a 2 contra o Tuna Luso, dois empates – 2 a 2 com a seleção Paraense e 4 a 4 com o Paysandu – e a primeira derrota, para o Remo, por 5 a 3.

E num vapor gaiola, o time sobe o Amazonas, rumo a Manaus, rebocando uma alvarenga carregada de alimentos para o Acre. A 10 milhas por dia, a gaiola leva duas semanas para chegar a Manaus. No início da viagem tudo bem, mas sem o que fazer a bordo, e com a demora da viagem, os jogadores desciam para a casa das máquinas do vapor, onde tomavam verdadeiros pileques com alguns membros da tripulação. Na Guerra os Aliados somam vitórias.

Os jogadores desembarcam em Manaus cansados e com saudade de casa, e no primeiro jogo perdem para o Olímpico, por 3 a 2. Mas no segundo jogo o time reage e derrota o Nacional, por 6 a 1. Mas é justamente depois desse jogo que uma terrível disenteria ataca o chefe da delegação, o jornalista Aristófanes da Trindade e os jogadores Pinhegas, Guaberinha, França, King, Edésio e Papeira.

Prontamente medicados os jogadores se recuperam mas recebem uma recomendação médica de comer muita verdura e frutas, tomar apenas água mineral, e evitar ovos e crustáceos.

Na despedida de Manaus, o Santa Cruz vence o Rio Negro, por 5 a 1.

Entusiasmados os dirigentes pensam em alcançar pelo rio Amazonas, o Peru, para mais alguns jogos, mas o CND proíbe o batismo internacional do clube devido a Guerra que está cada vez mais próxima do fim e por isso mesmo, terrível. O Itamaraty recomenda que os clubes brasileiros não deixem o território nacional.

 

Segunda Guerra Mundial

Agora, a bordo do Fortaleza, um vapor que liga Quito, no Peru, à capital do Pará, o Santa Cruz desce o Amazonas em direção à Belém. Só que agora, o time está desfalcado: Cidinho, Pelado e Osmar ficaram em Manaus, contratados por times amazonenses. O plano é ao chegar em Belém, pegar um Ita e descer o mais rápido possível para Recife.

Mas, no caminho, em Santarém, começam as complicações.

Numa madrugada, King e Papeira têm uma violenta recaída da disenteria, e a médica à bordo diagnostica: os dois contraíram a terrível “terçã maligna”, uma febre da família do tifo. Desobedecendo as ordens da médica, Papeira jogara descalço, tomara banho frio e tinha bebido alguns tragos a mais. King, bom de garfo, tinha se excedido num jantar com fígado e ovos, duas coisas proibidíssimas pela médica.

Na chegada a Belém, no dia 28 de fevereiro, a má sorte continua perseguindo os pernambucanos, A 1º de março, o Governo decreta a paralisação do tráfego marítimo… O Santa é obrigado a ir arranjando jogos para pagar a alimentação e o hospital dos dois jogadores. A hospedagem não é problema, os jogadores ficam alojados na garagem náutica do Clube do Remo.

No dia seguinte, 2 de março, o chefe de polícia de Belém aparece na concentração do Santa com um telegrama de Manaus solicitando a prisão do jogador Pedrinho, que segundo o relato teria “feito mal a uma menor de 17 anos”.

Pedrinho jurou que nem namorada tinha em Manaus e logo foi descoberto que tudo era uma “armação” de um clube que estava interessado no futebol de Pedrinho.Tudo caiu no esquecimento.

Enquanto na Guerra no norte da África, as tropas inglesas e americanas fechavam o cerco em torno do general alemão, Rommel, apelidado de “a Raposa do Deserto”, em Belém, o Santa derrotava o Remo, por 4 a 2.


Com Guaberinha e seu tradicional gorro, o Santa entra em campo em Belém


Dois dias depois a fatídica excursão ganha seu primeiro mártir: na madrugada do dia 4 de março, a febre terçã mata o jogador King.

De luto, no dia 7 de março, domingo de Carnaval, jogadores do Santa e do Paysandu entram em campo e antes do fim da partida recebem outra terrível notícia: Papeira também tinha falecido devido à terrível febre.

Abatidos e emocionados os dirigentes tentam promover a volta por avião, mas descobrem que não têm o dinheiro suficiente para a compra das passagens e por isso o time continua jogando recebendo como pagamento 50 por cento da renda.

Finalmente, reaberto o tráfego marítimo, os dirigentes do Santa Cruz conseguem passagens num navio para Recife. A caminho do navio o time recebe uma contraordem e tem que voltar porque a carga da embarcação é inflamável.

Até foi tentado arrumar um barco a vela para chegar até São Luis do Maranhão. Mas ia ficar muito caro porque o time teria que pagar a alimentação dos jogadores e da tripulação, além do preço do frete do barco.

No dia 28 de março finalmente, o time embarca rumo a Recife, com uma parada prevista de 4 dias em São Luis. Para arrumar algum dinheiro os jogadores trocam as passagens de primeira para as de terceira classe e são obrigados a viajar na companhia de 35 ladrões que a polícia do Pará está mandando de volta para o Maranhão. Todas as precauções são tomadas para que ninguém seja roubado, mas nem precisava, antes do fim da viagem jogadores e ladrões já eram bons amigos.

Mas antes que tudo terminasse mais um contratempo: o navio ficou retido e só poderia continuar a viagem em comboio.

O jeito é jogar com o faturamento distribuído entre os jogadores. No jogo contra o Moto Clube, o cozinheiro do navio entrou na ponta-esquerda, porque com Edésio e Capuco machucados não tinha onze jogadores para ser escalados. Ainda bem que o tal cozinheiro tinha jogado nos juvenis do Vasco e não fez feio.

Mas continuam as loucuras. O comandante comunica que o navio irá partir logo depois de outro jogo em São Luís, de madrugada, com destino à Fortaleza. No início da viagem desaba um temporal e sem visibilidade, o navio começa a andar em ziguezague. O comandante resolve voltar ao porto de São Luis, inclusive porque o radar acusava a presença de submarinos alemães.

Desesperados os jogadores resolvem ir de trem para Teresina que descarrila duas vezes. Sem vítimas, graças a Deus.

Mais jogos dessa vez em Teresina, e o time completa 28 partidas na excursão que já dura perto de 4 meses.

A viagem até Recife foi completada de ônibus, não sem que o ônibus fosse parado pela polícia!

Mas quando viram que era o time do Santa deixaram seguir.

Quase meia noite, do dia 2 de maio, quando o Santa entra em Recife. Quatro meses de excursão, jogadores exaustos, nervosos, emocionalmente abatidos. O filho de Guaberinha de 6 anos, custa a reconhecer o pai.

A mala de Papeira foi entregue a família.

A de King caiu ao mar no desembarque em São Luís.

PS – relutei muito tempo em contar essa história levantada pelo Lenivaldo, mas acho que é importante as novas gerações saberem como era difícil o futebol naquele tempo e que o trabalho de Lenivaldo Aragão foi da maior importância.

Michel LaurenceSão Paulo

(A história completa está inserida no livro, dividido em três volumes 'Santa Cruz de Corpo e Alma')

Comentários

Postar um comentário