(Em homenagem a um festejado personagem do futebol pernambucano, que acaba de nos deixar aos 81 anos, aqui está um pouco de sua história)
Aflitos, o mundo de Araponga (Foto; CBF) |
A frase do lateral-direito Gena, numa tarde
de 1968, provocou uma gargalhada geral entre os jogadores do Náutico. Sentados,
à beira do gramado dos Aflitos, eles esperavam o início de mais um treino do
então pentacampeão pernambucano, na sua marcha em busca do Hexa.
O novo roupeiro do clube, Severino
Matias de Carvalho, nascido em 07/07/1940, atravessava o portão diante das
sociais, e perdia naquele momento o apelido de Miruca, trazido do time dos
portuários.
Torcedor timbu, o agora funcionário do
Alvirrubro procedia das Docas do Porto do Recife, em cuja equipe jogava. Por
ser muito veloz, tinha o apelido de Miruca, um ponta-direita paraibano, que
brilhou no Treze, Náutico, Santa Cruz e São Paulo.
Os colegas achavam Severino, que todos
tratavam por Biu, com algum jeito de Miruca, quando estava com a bola no pé.
Para Gena, o recém-chegado responsável
pela rouparia do clube dos Aflitos, lembrava Araponga, um meia-armador do Santa
Cruz, tão magro como o Miruca de araque. Por coincidência, os verdadeiros
Miruca e Araponga procediam de Campina Grande, na Paraíba. O ponta-direita foi
revelado pelo Treze e o meia pelo Campinense, os rivais históricos da chamada
Rainha da Borborema.
Momentos depois da brincadeira tirada
por Gena, um dos maiores laterais do futebol brasileiro, naquela época, o técnico
Duque, que também gostava de uma greia, ‘oficializava’ o apelido:
– Araponga, traz as bolas pro campo.
Nova risadagem e daí para frente, o
ex-portuário passou a viver sob a nova denominação.
Comemoração familiar (Foto: Arquivo do Blog) |
AS
MANIAS DE DUQUE
Se há uma pessoa engraçada, esta é
Araponga. A começar pelos dribles que aprendeu a dar nos inúmeros pedidores de
camisa. Dificilmente esquenta a cabeça. Ao contrário, com seu jeito calmo e
andar desapressado, normalmente desarma as mentes mais apoquentadas. É
sobretudo, espirituoso. Certa vez chegou aos Aflitos um grupo de um certo
Instituto de Línguas, oferecendo um curso de inglês aos jogadores. Sem saber
com quem estavam falando, depararam-se com Araponga e sua verve. Ficaram desorientados:
– É trabalho perdido. Os jogadores daqui dizem
que descem pra baixo e sobem pra cima, e que só falam brasileiro – disse-lhes o
roupeiro.
Araponga pode não ter superstições,
mas muitas vezes foi obrigado a conviver com as dos outros. No tempo de Duque,
por exemplo, guardava com muito carinho a camisa surrada que o treinador usava a
cada jogo do campeonato, bem como o velho par de meias de cores diferentes,
outra ‘simpatia’ do mineiro, que não esquecia de calçá-las, momentos antes das
partidas. Por essas e outras terminou sendo chamado de catimbozeiro.
– É, inventaram isso, mas quem fazia
tudo era João de Maria – defende-se, referindo-se a um antigo jogador do Santa
Cruz, que virou massagista.
E haja pinhão roxo, sapo costurado,
sal grosso, galhos de arruda e coisas do gênero.
Sempre alvirrubro |
DOIS
CHATOS NUMA PORTA SÓ
Quando, anos mais tarde, o outro
Gena, ex-Sport, contratado pelo Náutico, cumprimentou-o ao chegar à Avenida
Conselheiro Rosa e Silva, com o clássico “tudo bem?”, Araponga surpreendeu o
volante sergipano com esta resposta:
– Tudo bem, Gena. Disseram que você é
muito chato, mas eu sou mais chato ainda. Então, acho que a gente vai se
entender.
Era só a maneira de deixar o
recém-contratado à vontade. Gena respondeu com um sorriso meio seco, porém, enquanto
conviveram no mesmo ambiente de trabalho, os dois ‘chatos’ se deram muito bem,
como Araponga havia preconizado.
A
ESPERTEZA DE LUIZ NETO
Decisão do supercampeonato de 1983
entre Náutico e Santa Cruz, no Arruda. Casa cheia, com 76.636 torcedores. Houve
empates nos 90 minutos e na prorrogação, por 1 x 1 e 0 x 0, surgindo a
necessidade da cobrança de pênaltis. A disputa estava empatada, e num chute do paraibano
Porto, do Náutico, houve a impressão de que a bola tinha ultrapassado a linha
fatal, porém, o goleiro Luiz Neto, alegavam os alvirrubros, agira com muita rapidez,
puxando a pelota com grande habilidade e deixando-a sobre a linha. E o goleiro
tricolor começou a comemorar a grande defesa, sob protestos da timbuzada, que
só faltava dar no juiz, o paulista Laerte Marquezine, contratado pela Federação
Pernambucana de Futebol. A galera da Cobra Coral foi ao delírio.
Ainda hoje os alvirrubros reclamam “o
gol não marcado”, porém, Luiz Neto sempre contra argumenta com firmeza:
– A bola não ultrapassou a linha, eu
segurei antes.
O técnico Ernesto Guedes, do Náutico,
suspenso e obrigado a ver aquela final do lado de fora, agitava na arquibancada.
O massagista Charles, já falecido (nada a ver com o treinador e preparador
físico Charles Muniz), ia lá junto dele a todo instante para receber as ordens.
Por coincidência, no momento da
confusão, quem comandava a equipe tricolor era o assistente-técnico, o
ex-lateral Pedrinho, porque Carlos Alberto Silva tinha sido expulso do banco.
Em meio ao bafafá, Araponga ainda teve nervos para brincar.
– Vamos deixar com dois campeões, e a gente
racha o bicho – disse a Pedrinho, que levou muito a sério a lorota do roupeiro
adversário:
– Nada disso, já que estou aqui, perco ou
ganho.
A confusão engrossava e o árbitro era
acossado por uns e outros.
Lá para as tantas, Ernesto Guedes
invadiu o campo e gesticulou para as arquibancadas, incitando os torcedores a
acompanhá-lo. Sem dúvida, uma atitude irresponsável e inconsequente. Ainda bem
que a galera não atendeu ao tresloucado treinador. Como a cobrança de pênaltis
não havia terminado, e por estar a fim de melar, o técnico alvirrubro dirigiu-se
a Araponga:
– Vai lá e bota fogo na rede!
Araponga foi logo apontando para um
determinado ponto do estádio:
– Olhe ali, tem um bocado de guarda,
cada um com dois metros de altura. Se você quiser ir, vá. Eu mesmo não.
É claro que o gaúcho Ernesto Guedes ficou na
dele. Pouco tempo depois, o Santa dava a volta olímpica, festejando seu
terceiro supercampeonato.
Episódio nem um pouco divertido para
Araponga aconteceu na época em que Nunes, o Cabelo de Fogo, defendeu o Náutico.
O sergipano – nascido em Cedro de São João (SE), mas registrado em Feira de
Santana (BA) – tinha oito pares de chuteira, e sempre que o Náutico jogava fora
dos Aflitos, queria que o roupeiro levasse todo o estoque.
Num clássico com o Santa Cruz, no
Arruda, Araponga achou que meia dúzia dava para quebrar o galho e deixou os
dois pares restantes na rouparia. Só que na hora de se aprontar para entrar em
campo, o tal do João Danado achou de pedir justamente, um dos pares que haviam
ficado.
“Isso é implicância”, pensou Araponga,
pois o atacante jamais usara tais chuteiras. Nunes insistiu muito, mas o
roupeiro terminou lhe entregando um dos pares que estavam no saco. O jogador
resmungou durante uns 10 minutos, mas acabou calçando.
Bola rolando, Araponga torcia a cada
arrancada de Nunes para que o gol saísse e o Náutico vencesse a partida,
lembrando-se de um sábio conselho do técnico Orlando Fantoni:
– Tenha muito cuidado porque o jogador
nunca tem culpa das coisas. Quando ele escorrega, olha logo para o pé, e com
isso está entregando o roupeiro, insinuando que a culpa é da chuteira, mal
cuidada, e não dele.
Nesse dia, porém, Araponga respirou
sossegadamente. O Náutico venceu o Santa Cruz, e mesmo com a chuteira
indesejada, Nunes balançou a rede duas vezes, com um gol de falta e outro de
bola rolando. Mas daí para frente, nunca mais quis correr o risco. Para onde
ia, levava a carga completa.
VETO DE ARAPONGA
Contou
o radialista Alfredo Augusto Martinelli, que em 1973, o Náutico estava
contratando um ‘caminhão de jogadores’, entre eles um tal de Zé Francisco.
Araponga observou a dificuldade que ele tinha para colocar a faixa no pé, com a
caneleira, na chuteira. Chamou o dirigente Sebastião Orlando, o mecenas dos
Aflitos naquela época e aconselhou:
–
Chefe, não assine contrato com esse Zé Francisco. Esse cara não joga nada.
O
dirigente confiou na velha experiência do roupeiro, e Zé Francisco perdeu a
chance de vestir a camisa alvirrubra. Com isso, Araponga ficou livre de um
jogador que sequer sabia se aprontar para entrar em campo.
Araponga e Kuki em tempos de pandemia (Foto: acervo Kuki) |
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