Ao fundar o Tricolor, a meninada da Boa Vista só queria se divertir
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| O time dos meninos da Boa Vista atravessou o século (Foto: Arquivo do Blog) |
Na
segunda década do século passado, o mundo acompanhava estarrecido o desenrolar
da Primeira Guerra Mundial, envolvendo Reino Unido, França, Rússia, Alemanha,
Áustria, Hungria e Itália. No Recife, sem dar a mínima importância ao grande
conflito, cujo desenrolar era acompanhado através dos vários jornais existentes
na cidade, uma turma de estudantes, reunia-se todas as noites na calçada da
igreja de Santa Cruz, no largo do mesmo nome, bairro da Boa Vista, não para
falar de assuntos mais compatíveis com sua faixa de idade, de 14 a 17 anos. O
local era considerado o que hoje se chama de point, com a usual
presença de moças e rapazes da vizinhança. Conversava-se sobre os mais
diversos assuntos, desde a última prova na escola, filmes em evidência nos cinemas
do Recife, passando pelas namoradinhas.
Não
poderia faltar à pauta diária daquele grupo que despontava para a vida, o
futebol, esporte herdado dos ingleses, que estava muito em moda em Pernambuco,
como de resto em todo o Brasil. Alunos do Colégio Americano Batista e do Colégio
Salesiano, eles usavam a campina do Derby como local dos seus encontros
futebolísticos. Não havia uma disputa propriamente dita, mas apenas o gosto
para cultivar o na época chamado esporte bretão. O local onde se situa o Parque
Treze de Maio, atrás da Câmara Municipal, era outro ponto de convergência dos
adeptos do futebol, porém, menos frequentado por aquela turminha. A maioria
residia nas ruas de Santa Cruz, Glória, Cotovelo e Mangueira, nas imediações do
local do ponto de suas reuniões informais.
Um
dia alguém deu a ideia da criação de um time, o que foi aceito prontamente. O
momento era propício, pois com a crescente propagação do futebol na capital
pernambucana, a todo momento aparecia uma nova equipe. Muitas desapareciam tão
rapidamente como vinham à tona. Todavia, o pessoal que se propunha a criar mais
uma, pretendia que ela tivesse vida longa. E assim, em 3 de fevereiro de 1914,
na casa número 2 da Rua da Mangueira, hoje Leão Coroado – revolucionário
pernambucano de 1817 – surgia o Santa Cruz Futebol Clube, que nesta
quinta-feira 3/2/2022 completa 108 anos de fundação e cujo nome é uma
referência ao local em que foi gerado.
A notícia logo percorreu o bairro, e mesmo antes da reunião oficial de fundação, já se sabia que um novo clube estava dando seus primeiros passos no cenário desportivo pernambucano. Os pais acompanhavam com curiosidade, achando que se tratava de um simples passatempo dos filhos, motivados pelo clima que existia na cidade, com a implantação de um novo esporte, chamado futebol, que os funcionários de algumas companhias inglesas que funcionavam na cidade gostavam de praticar. Seria mais um divertimento para os garotos, embora não deixasse de haver quem ficasse desconfiado sobre se a nova modalidade seria recomendável ou não àqueles jovens.
COMEÇO ARRASADOR
Uma goleada de 7 x 0 marcou a estreia do
Santa Cruz no cenário futebolístico pernambucano. Já havia muitas equipes
espalhadas pelo Recife numa época em que existiam poucas opções para a meninada
se divertir. Antes do primeiro compromisso saldado pelo Santa criou-se entre
seus integrantes um clima de extrema expectativa. Todos queriam participar do
jogo que entraria para a história. Aliás, o fato histórico era o que menos
preocupava naquele momento. Ninguém atinava para isso. O que aquela turma
queria mesmo era estar presente ao jogo.
A partida foi disputada no Derby. O
campo situava-se nas proximidades do mercado do grande homem de negócios
Delmiro Gouveia, onde hoje se situa o quartel da Polícia Militar.
O Rio Negro, primeiro adversário do Santa Cruz, não suportou o entusiasmo da equipe estreante, que contava com um jogador diferenciado. Era Carlos Machado. Ele arrasou o time da Boa Vista, fazendo cinco gols. No fim do jogo comemorava-se a estreia auspiciosa do time dos meninos do Largo de Santa Cruz: 7 x 0 sobre o já tarimbado Rio Negro. Abraços, elogios recíprocos e a pressa que cada um dos jogadores tinha em voltar para o local onde se originara o clube a fim de levar a boa nova. O boca a boca era a única maneira de fazer a notícia se espalhar.
CURIOSA REVANCHE
Enquanto a garotada do Santa Cruz
festejava, o pessoal do Rio Negro ruminava amargamente o fracasso. Aquela
derrota para um clube cujo nome ninguém sequer sabia, tornou-se um pesadelo. O
Rio Negro resolveu pedir uma revanche. Todavia, impôs duas condições: o novo
jogo seria realizado no seu campo, na Rua do Sebo, hoje Barão de São Borja, e o
Santa Cruz não escalaria Carlos Machado. A primeira proposta era normal, porém
a segunda espantou os dirigentes e jogadores santa-cruzenses. Mesmo assim, a
pretensão do adversário, embora tendo sido considerada absurda, foi aceita pela
diretoria do Santa.
Para os jogadores do Rio Negro, a
ausência daquele homem, que tinha feito o diabo com sua equipe, seria o caminho
da reabilitação. Era preciso apagar aquela péssima impressão deixada no Derby.
O Santa Cruz respeitou fielmente o
acordo. Chegou a campo na hora prevista e, logicamente, embora agindo com
discrição, o pessoal do Rio Negro teve o cuidado de conferir se Carlos Machado
estava entre os que iriam jogar. Todos ficaram tranquilos ao verificar que o
jogador perigoso do adversário realmente não entraria em ação.
Não sabiam os anfitriões que os
visitantes tinham levado outro atacante que substituiria com todas as honras o
fantástico Carlos Machado. Era Carlindo Cruz, encarregado de assinalar os gols
que o outro não poderia marcar.
Encerrado o novo amistoso, os defensores
do Rio Negro mostravam-se estarrecidos.
Estupefatos e incrédulos, eles tinham levado outra sova do Santa, por um
placar mais elástico até: 9 x 0. Carlindo Cruz, o substituto do “barrado”
Carlos Machado, fez seis.
Daí para frente, o Santa Cruz foi
somando vitórias. As vítimas dos meninos da Boa Vista iam se sucedendo: 15 de
Novembro, Varzeano, Casa Forte, Torre, João de Barros, hoje América, fundado
dois meses após o surgimento do Santinha e muitos outros que apareceram em seu
caminho.
A projeção alcançada pelo novo clube foi
tamanha que as equipes se organizavam no Recife com o propósito de acabar com a
sua invencibilidade, que já se tornava um incômodo. Colecionando vitórias, o
Santa Cruz ia espalhando seu nome pelos quatro cantos da cidade e conquistava
novos integrantes para seu quadro social.
MUDANÇA
DE CORES
Em
1915, um ano depois da fundação do Santa Cruz, foi fundada a Liga Sportiva
Pernambucana, com o objetivo de agrupar ordeiramente as muitas equipes já
existentes. De início, a entidade recém-fundada deparou-se com um problema. Era
a existência de dois clubes com as mesmas cores: Santa Cruz e Flamengo, ambos
alvinegros. Essa duplicidade não era permitida pelos estatutos da mentora.
Um
dos dois teria que mudar de cores, tendo se realizado um sorteio para saber
qual o clube que permaneceria intocável. O Flamengo levou a melhor, continuando
assim com o direito de permanecer ostentando o branco e o preto em seu
uniforme.
O
Santa Cruz adotou o vermelho para ser acrescentando às suas cores. Segundo
Teófilo Batista de Carvalho, Lacraia, a sugestão partiu dele mesmo. Porém, Luiz
Barbalho Uchoa Cavalcanti, o primeiro secretário do clube, atribuía a si a
inserção da terceira cor no pavilhão e na camisa do hoje tricolor pernambucano.
Quando
o Santa Cruz ainda engatinhava, poucos meses depois de fundado, por um triz não
foi desfeito. O clube necessitava de 35 mil réis e só tinha em caixa 6 mil.
Numa
agitada reunião, um dos presentes teve uma ideia estapafúrdia: o clube seria
dissolvido e os 6 mil réis existentes seriam gastos no caldo de cana elétrico,
uma novidade que era a maior sensação do Recife, funcionando no Bar
Constantino, na Rua da Aurora.
Alexandre
Carvalho, um dos fundadores, considerou uma afronta. Deu um murro na mesa e pronunciou uma frase
histórica:
–
O Santa Cruz nasceu e vai viver eternamente!
Logo,
o resoluto diretor partiu em busca de uma solução, nem que para isso o Santa
tivesse que sair à rua “esmolando para missa pedida”, como era costume naquele
tempo. Em companhia de Quintino Paes Barreto foi procurar um construtor
abastado, amigo de seu avô. Ao explicar
a finalidade da visita obteve um não, categórico, e, em seguida, uma
reprimenda:
–
Menino, esse jogo de bola é para estrangeiro. Para vocês existe cinema na Rua
Nova. Diverte muito mais.
Alexandre
não conseguiu esconder seu desapontamento. O ricaço sentiu a angústia do rapaz
e quando ele ia se despedir, fez um ligeiro ar de riso, puxou-o para um canto
da sala e indagou:
–
Cem mil réis dão pra vocês começarem?
Não
precisa dizer que os dois jovens ficaram estupefatos. O aperto coral
desapareceria com apenas 29 mil réis, já que havia necessidade de 35 mil
(existiam 6 mil em caixa) para a aquisição de material esportivo. Como nunca
tinham visto uma cédula de cem mil réis, arregalaram os olhos quando receberam
a nota novinha em folha. Era a primeira grande doação feita ao Santinha.
Uma
condição apresentada pelo empresário era que o fato ficasse em sigilo. E ficou.
Só em 1967, quando o Santa festejava seu 53º aniversário de fundação, seu nome
foi revelado. Era Francisco Maciel, o primeiro membro de uma ilustre família
que forneceu vários colaboradores ao Tricolor.
Espanto
geral entre os demais garotos, com o tamanho da oferta. O clube adquiriu o
material de que necessitava e ainda ficou com uma boa grana de reserva. E o
cara que queria transformar o Santa em caldo de cana ficou com a cara no chão.
Numa época em que a cordialidade e a fidalguia reinavam no
futebol, o Santa Cruz fez história. Em 15 de novembro de 1916, realizava-se o
primeiro amistoso interestadual no Rio Grande do Norte. O ABC recebia, em
Natal, a visita do tricolor pernambucano. Este, por sua vez, era anunciado como
o primeiro time de Pernambuco a exibir-se em outro Estado. A respeito do jogo,
um jornal natalense fez previamente este comentário:
“O resultado do jogo é difícil prever, entretanto, com todos os
meios e recursos superiores que dispõem em Pernambuco os clubes de futebol e
que nos faltam por completo, as possibilidades de vitórias pendem para os
jogadores do Santa Cruz. É a primeira vez que vem a este Estado um clube
esportivo disputar um encontro oficial. A tarde esportiva de hoje será um
momento agradável a todos os que apreciam o interesse do jogo bretão. Os
jogadores do Santa Cruz chegados ontem pelo horário da Great Western, estão
hospedados no Hotel Internacional, na Ribeira, e a delegação é composta de 15
atletas. Jovens da sociedade do Recife. Acompanhados do major Arsênio Borges
(pai do atleta Arsênio), comandante do 49º Batalhão de Caçadores, presidente de
honra da embaixada, e mais o Sr. Heitor Costa, da Diretoria efetiva. Às 13hs o
ABC receberá os moços do Santa Cruz, no edifício sede da Associação Comercial,
com uma sessão cívica que será presidida pelo Exmo. Sr. Henrique Castriciano de
Souza, Vice-Governador do Estado.”
O “‘referee” (árbitro) do amistoso interestadual foi o estudante
potiguar Alberto Roselli, recém-chegado da Suíça, onde estudava. O jogo teve um
primeiro tempo disputadíssimo, com um empate de 1 x 1. Na segunda fase, o Santa
se soltou e marcou três gols. No fim do jogo, Santa Cruz 4 x 1 ABC.
Dando
mais detalhes do acontecimento, o jornal diz que uma multidão compareceu ao
evento, destacando-se "grande número de senhoras, senhoritas e
mancebos". A banda de música do Batalhão de Segurança abrilhantou a
solenidade. Os atletas do Santa Cruz foram ao campo e retornaram ao hotel, em
bondes especiais. À noite, as diretorias do ABC e de outras agremiações
desportivas, além de autoridades ofereceram à delegação visitante um grande
baile no "Natal Clube", e no dia seguinte a embaixada do Santa Cruz
retornou ao Recife pelo horário da Great Western, com despedida festiva,
tocando a banda de música da Escola de Aprendizes Marinheiros.
AS EQUIPES
ABC: Avelino Alves Freire
Filho, conhecido por Lili, Cor de Rosa e Zé Pinheiro; Arary Brito, Manoel Gomes
e Deão (Tarugo); Zé Barreto, Júlio Meira, Zé dos Santos, Alemão e Rochinha.
Reservas: Bigois, Moura e Aurino.
SANTA CRUZ: Ilo, Otávio e Valença;
Manoel Pedro, Teófilo, o popular Lacraia, e Arsênio; Castro, Alcindo, apelidado
de Pitota, Martiniano Fernandes, conhecido por Tiano, Fausto e América.
Reservas: Antonio Almeida, Mário Rosas, Gastão Sá e Manoel Gonçalves.
O intermediário desse amistoso foi um jovem potiguar, estudante de
direito, no Recife, e que havia se entrosado facilmente com a turma do Santa,
tanto que chegou a ser secretário da diretoria. Era João Fernandes Campos Café Filho, tratado por João Café, futuro presidente da República. (Era
vice-presidente e assumiu a Presidência em 24 de agosto de 1954, com o suicídio
de Getúlio Vargas, tendo sido deposto em 8 de novembro de 1955).
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| Antes de ser Presidente da República, Café Filho foi diretor do Santinha (Foto: reprodução Lance) |
Antes de alçar voo rumo ao Palácio do Catete, Café Filho voltou
para sua terra, algum tempo depois de formado, onde exerceu as atividades
jurídicas. Seu ingresso na política deu-se na cidade pernambucana de Bezerros,
onde se elegeu vereador. No futebol foi goleiro, tendo defendido o Alecrim
Futebol Clube da capital potiguar. No Santa Cruz desempenhou a função de
secretário da diretoria executiva.
O
regresso da equipe santa-cruzense ao Recife foi uma verdadeira apoteose. Quando o trem parou na estação de Cinco
Pontas, o povão que ali aguardava os ‘heróis’ tricolores, explodiu em vivas e
aplausos. Não faltou uma banda de música, como era praxe. A vitória de 4 x 1
tinha repercutido estrondosamente entre os torcedores corais. A caravana seguiu
diretamente para a sede do clube, um primeiro andar alugado na Rua da Glória,
na Boa Vista, num bonde ornamentado. Este parou várias vezes para os jogadores
ouvirem a saudação de torcedores entusiasmados. O grande tricolor Álvaro Ramos
Leal, pai do mais tarde médico, deputado estadual e dirigente coral Nilson
Ramos Leal, fez mais de dez discursos, tendo chegado bastante rouco à sede.
A
notícia da estrondosa vitória tricolor, da qual se tomara conhecimento por
telegrama, mereceu um enorme cartaz à entrada do Cine Guarany, em Olinda.
À
noite, os jogadores do Tricolor foram homenageados pela diretoria do Santa Cruz
com um banquete.
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| Calçada da igreja da Santa Cruz, onde o Santa começou (Foto: reprodução internet) |
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