SANTA CRUZ, 108 ANOS (3)

 Lendário Lacraia tornou popular

 clube dos meninos da Boa Vista


Lacraia na primeira equipe tricolor (Foto: reprodução)


 Quando o Santa Cruz foi fundado, o futebol no Recife reunia apenas gente de elite. Como se estivesse predestinado a se tornar um clube popular, o hoje Tricolor do Arruda desde o início contou com a colaboração de um jovem de cor. Era Teófilo Batista de Carvalho, conhecido pelos companheiros como Lacraia, que viria a ser mais tarde alto funcionário do Banco do Brasil.

Naqueles primeiros tempos do hoje Clube das Multidões, Lacraia um rapaz elegante tornou-se uma figura exponencial. Sua presença na equipe despertava a atenção e curiosidade. Ele era uma espécie de chamariz para que o Santa Cruz ganhasse muitos adeptos nas camadas menos favorecidas da população. É verdade que Lacraia pertencia a uma família tradicional do Recife. Filho de médico, tinha o respeito de todos.

Todavia, o que mais impressionava os adeptos do futebol era sua presença, como centromédio, no time do Santa, numa época em que o futebol era praticado por gente branca, pois tinha sido introduzido no País por ingleses ou por pessoas, geralmente de pele clara, que haviam estudado na Inglaterra, nação considerada o berço do futebol.

Familiares de Lacraia no centenário do Santa em 2014: Eduardo e Gil Neto, Janice e Mariana Bacellar (netos); Pedro Lucas e Maria Eduarda (trinetos) e Ademilde Miranda (nora) (Foto: Fernando Machado)

O nome desse baluarte dos primeiros passos do Santa Cruz não consta na ata de fundação, embora ele tinha insistido para assiná-la. Não obteve o consentimento do presidente José Luiz Vieira. Tinha participado de todos os movimentos que antecederam o surgimento do novo clube, mas não compareceu à histórica reunião de 3 de fevereiro de 1914 porque estava a braços com os livros, preparando-se para o vestibular de engenharia. No dia seguinte tentou assinar a ata, todavia, o presidente não permitiu.

Até 1920 ficou diretamente ligado ao clube, tendo formado uma intermediária que ficou famosa: Zé de Castro, o popular Lua Cheia, Lacraia e Manuel Pedro, também conhecido como Professor porque ensinava futebol aos portugueses que militavam no Clube Almirante Barrozo (sic).

 ESCUDO TRICOLOR

Foi Lacraia quem desenhou o escudo do Santa Cruz, quando este passou a ser tricolor, o mesmo escudo que ainda hoje simboliza a pujança e a grandeza de um clube que tem enfrentado inúmeras crises, através dos anos, mas que sabe trilhar o caminho para superá-las.

A ideia do escudo surgiu numa ocasião em que um amigo do pai de Lacraia, o velho Ramiro Costa, proprietário da secular livraria localizada na Rua do Imperador, no centro do Recife, que levava seu nome, perguntou ao centromédio do Santa, se ele não estava interessado em mandar confeccionar uns escudos para o Santa Cruz.  Sentindo que o clube precisava de um distintivo que identificasse seus diretores e simpatizantes, não hesitou em responder favoravelmente. Ele mesmo elaborou o desenho, e a encomenda seguiu para os Estados Unidos, pois naquele tempo, tanto no Rio como em São Paulo não haveria facilidades para fazê-los. No Recife nem se fala.

Foto: reprodução

Quando algum tempo depois, Lacraia foi informado da chegada dos escudos, a notícia estava acompanhada da conta, cinco contos de reis. Apenas para tomar o real como parâmetro, digamos, cinco mil reais. Àquela altura, o presidente era Álvaro Ramos Leal, mais tarde médico, pai do também médico e dirigente do clube em meados do século passado, Nilson Ramos Leal, e que seria avô do ponta-direita Carlinhos (Ramos Leal), de vitoriosa passagem pelo próprio Santa, Sport e América.

Ao ser cientificado do compromisso que teria que ser saldado com o livreiro Ramiro Costa, Álvaro Ramos Leal deixou seu companheiro assustado ao dizer que o assunto seria levado à apreciação da diretoria. Se esta não aprovasse, nada feito. Lacraia que pagasse do seu bolso, uma vez que o clube nada tinha encomendado.

Sem dinheiro para cobrir uma despesa tão alta, o centromédio ficou apreensivo. Porém, para sua tranquilidade, os demais diretores acharam lindos os escudos, que podiam ser usados no chapéu – um dos costumes da época – com os menores sendo presos à lapela e à gravata.  

 A GRANDE VIRADA

Uma vitória nos primeiros tempos do Santa Cruz, que entrou para a história, foi conquistada diante do América, na época, a maior força do futebol pernambucano. O jogo despertou muita atenção porque marcava a estreia, na equipe americana, do centroavante Zé Tasso. Este defendia o Santa Cruz, mas se transferiu para o Alviverde, atendendo ao convite de um irmão, uma vez que o América era o clube da paixão da família Tasso.

Aquele encontro, portanto, era aguardado com muita expectativa, e os jogadores do Santa não viam a hora de dar uma lição no “desertor”. Todos queriam mostrar, embora permanecessem seu amigo, que o Tricolor não se acabara por causa de sua saída, embora sentisse o desfalque.

No dia do jogo, o campo fervilhava de torcedores, já que todos desejavam ver Zé Tasso enfrentando os ex-companheiros. Os adeptos do Santa queriam acompanhar de perto a resposta de seus craques a Zé Tasso.

 DECEPÇÃO E REAÇÃO

Iniciou-se o jogo. Zé Tasso era seriamente vigiado, mas com o passar do tempo, o América começou a mandar em campo, fazendo a defesa santa-cruzense desmoronar-se. Ao encerrar-se o primeiro tempo, o América vencia por 4 x 1, resultado que provocou um grande desânimo entre os aficionados tricolores. Enquanto isso, a torcida do América festejava.

No segundo tempo, uma tragédia parecia esboçar-se no caminho do Santa, depois que os alviverdes assinalaram seu quinto gol. O placar desfavorável de 5 x 1 era simplesmente vergonhoso para o Santa. E o atacante Zé Tasso como se comportava, agora que estava do outro lado? Simplesmente fenomenal, uma vez que havia marcado quatro dos cinco gols dos americanos. Poderia haver uma estreia melhor?

Faltavam 20 minutos para o jogo terminar, e muito torcedor tricolor já deixava o campo, levando para casa decepção e frustração, bem como a lamentação pelo fato de Zé Tasso estar agora reforçando um adversário.

Ainda não havia a figura do treinador, e com a tragédia mais do que anunciada, Lacraia, o capitão do time, chamou a responsabilidade para si. Mandou que Pitota, o craque do Tricolor fosse para a ponta direita a fim de fugir da implacável marcação dos zagueiros do América.

O goleador Pitota (Arquivo)


Numa época em que não se falava em esquema tático formal, a mudança feita por Lacraia surtiu efeito. O Santa Cruz foi forçando o jogo e, quando faltavam 15 minutos para o término da partida, houve uma penalidade máxima cometida pelo zagueiro Manta. A missão de transformar o pênalti em gol foi dada a Pitota, possuidor de um tiro notável. Apesar da larga vantagem do América, aquele tento, que todos esperavam fosse conquistado, poderia determinar um novo andamento na partida.

            Os deuses do futebol pareciam estar do lado contrário naquele dia. Pelo menos foi essa a impressão que ficou quando Pitota, um exímio finalizador, carimbou o travessão da barra guarnecida por Pedro Tasso, irmão de Zé Tasso.

A perda do pênalti, em vez de provocar desânimo entre os jogadores do Santa, teve efeito contrário. Dois minutos depois da inditosa jogada, Pitota fazia o segundo gol tricolor. Em seguida Tiano, o mais tarde catedrático de medicina e senador Martiniano Fernandes, substituto de Zé Tasso na equipe coral, aproveitava um cruzamento de Pitota para assinalar o terceiro tento dos corais.

A essa altura, o Santa Cruz já havia botado o América no quadrado. As investidas dos companheiros de Lacraia sucediam-se num ritmo incessante. Pitota continuava centrando, e os gols saindo. Placar final, Santa Cruz 7, América 5. Sem dúvida, uma virada fantástica, que durante muito tempo foi assunto nas rodas esportivas da cidade. 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários