Para investidor, SAFs por si só não salvarão o futebol brasileiro

Reportagem de JOSUÉ SEIXAS, Yahho Esportes

 


Guilherme Decca (reprodução/arquivo pessoal)





As mudanças no futebol brasileiro vêm sendo cada vez maiores e mais profissionais. A chegada da Sociedade Anônima do Futebol é comemorada pelos torcedores e declarações extravagantes chamam atenção.

No dia 18 deste mês, por exemplo, o sócio da 777 Partners, Josh Wander, disse que o clássico mais recente entre Vasco e Flamengo, pelas semifinais do Campeonato Carioca, seria ‘a última vez que o Vasco terá desvantagem financeira contra o Flamengo’.

No Cruzeiro, a SAF também gerou um debate entre o conselho do clube e Ronaldo. O conselho enviou uma carta em que dizia que o ex-atacante se comprometia em colocar R$50 milhões no clube e que os outros R$350 milhões seriam de um superávit. Ronaldo se defendeu, mas a situação parece longe de um fim.

Por conta dessas situações, o YAHOO ESPORTES decidiu entrevistar o investidor paulistano Guilherme Decca, que é um dos donos do Wakefield AFC, da 11ª divisão inglesa, e que tem mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro. Segundo ele, o futebol brasileiro precisa passar por mais mudanças e que a SAF pode ser um facilitador, mas não a grande propulsora.

“É inocente pensar que o futebol brasileiro vai decolar só com a SAF”, diz ele. “Ela é altamente positiva para o futebol brasileiro, claro, mas ela não resolve tudo e cada acordo tem histórias diferentes. Nem sempre os gestores que entram nos clubes têm o compromisso. Existem gestões boas e ruins em todas as empresas”, analisa.

YAHOO: Como você vê a chegada das SAFs ao Brasil?

GUILHERME DECCA: Eu acredito que esse é um movimento bastante positivo para o futebol brasileiro, mas existem muitas outras coisas que precisam ser vistas antes de pensar que essa será a grande mudança. Existem clubes que serão comprados e clubes que não serão comprados, mas só um vence e quatro são rebaixados nas principais divisões. É inocente pensar que o futebol brasileiro vai decolar só com a SAF. Ela é altamente positiva para o futebol brasileiro, claro, mas ela não resolve tudo e cada acordo tem histórias diferentes. Nem sempre os gestores que entram nos clubes têm o compromisso. Existem gestões boas e ruins em todas as empresas.

Y: O que o futebol brasileiro precisa melhorar logo?

GD: A primeira coisa que as pessoas precisam entender é que a SAF facilita um investimento dentro de um clube. Ela funciona, mas é só um processo dentre tantos outros que precisam ser feitos. O futebol brasileiro tem um problema muito grande com o calendário e esse é um item que precisa ser revisado assim que possível. Os times também têm que pensar em mais formas de serem sustentáveis, com serviços de streaming e formas de se aproximar dos torcedores.

Y: A SAF pode facilitar essas mudanças também?

Sim, pode. A grande questão é se a gestão dos ativos será bem feita pelos investidores. Nós temos três grandes exemplos no Brasil. No caso do Cruzeiro, o Ronaldo é um cara que é torcedor do clube e que já vem de uma gestão de sucesso no Valladolid. O time caiu, é fato, mas é um time que hoje gera lucro e que é sustentável. No caso do Botafogo, há a experiência do dono com o Crystal Palace. O único caso que me deixa preocupado é o do Vasco, por conta das condições iniciais do acordo e que pouco se sabe do futuro.

Os investidores chegaram e aceitaram um valor alto, que é cerca de quatro vezes a receita do clube, e entregaram R$70 milhões ao clube, sem mais detalhes dos próximos pagamentos. O estádio não está envolvido na negociação, o time tem dívidas… Esse é o tipo de coisa que, se for feito da maneira incorreta, pode gerar ainda mais dívidas ao clube. Se eu fosse torcedor do Vasco, estaria mais preocupado do que feliz com essa forma de negociação que está sendo feita. Precisa-se discutir mais as SAF no Brasil para que os processos deem certo. Estamos vendo clubes darem suas chaves e entregarem seus ativos, já promovendo mudanças na estrutura, sem sequer ver todo o dinheiro da negociação. É perigoso quando isso acontece.

Y: Você falou que os acordos estão sendo feitos num valor acima da receita dos clubes. Esse é o padrão?

GD: Não. Informalmente, meu sócio e eu vimos alguns clubes na Itália em que os valores para compra são somente de 1.2x receita, por exemplo. É uma diferença gritante. Esse número do Brasil, quatro vezes a receita, supera até os acordos que são feitos na Inglaterra. Acho até que podemos fazer um paralelo com a venda do Newcastle. Não vamos falar dos donos e do que fazem em seu país, mas podemos dizer que eles efetivamente têm dinheiro. Eles compraram todo o clube, até mesmo o estádio, e na primeira janela de transferências trouxeram jogadores bons no mercado, o que já mudou o clube de patamar. Sem exagero, sem promessa de loucuras, somente reforços pontuais. Esse é um modelo que pode ter problemas no Brasil, com tanto imediatismo no futebol.

Y: Ainda há muito a evoluir para que as SAFs consigam facilitar o que os torcedores imaginam?

GD: O problema do Brasil é a falta de discussão do que significa uma medida dessas. Os torcedores, claro, vão se empolgar. Eles veem nas manchetes cifras absurdas que supostamente serão pagas ao clube deles, veem a possibilidade de contratar estrelas do futebol mundial e de ganhar muitos títulos. Mas têm um lado negativo, têm o lado de que a gestão pode não fazer bem ao ativo. Os clubes e a CBF deveriam já ter regulamentado uma forma de checar os antecedentes e todas as informações desses compradores, mas isso não vem acontecendo. São acordos muito rápidos, feitos a valores altos, com pouca checagem. É um processo chamado “know your buyer” (conheça seu comprador).

O Burnley, da Inglaterra, era um exemplo de time sustentável, sempre ficando ali perto da zona de rebaixamento e coisa assim, mas era com que os torcedores “estavam acostumados”. Eles tinham condições de cair e subir, estavam naquela disputa, mas eram um clube que pagava as contas e tinha sustentabilidade. Daí, o clube é comprado e pouco tempo depois ele já perde a performance no futebol dentro de campo, está com dívidas e pode ser rebaixado. É um projeto futebolístico que deu errado.

Y: Como investidor, você acha que esse é o momento de adquirir um clube no Brasil?

GD: Acho que esse não é o momento. Devem haver confusões nessa primeira geração de investidores, com muitas mudanças na forma de fazer gestão. Eu acredito que, em cinco anos, os clubes já estarão sendo vendidos novamente e esse sim será o momento de investir no Brasil. Já estará aplicada uma gestão mais profissional, o cenário já deve ter mudado, pode haver até uma nova liga ou pelo menos novos acordos de televisão. Comprar times nas divisões mais altas sempre é uma aposta, porque é preciso ter tempo de perder, de ajeitar toda a estrutura, de cometer erros. É muito difícil que isso aconteça no Brasil.

O time não pode errar e já morrer, como acontece com o Burnley. Time saudável que não ganha também não agrada, mas só um consegue ganhar. Eu acredito que o movimento ideal, no Brasil, se não fosse uma desorganização, seria comprar um time na Série D e tentar subi-lo de divisões com uma gestão correta, mas a forma em que a Série D é feita pode fazer com que o projeto nunca saia de lá. Então, aí dá para olhar para a Série C, mas é tudo com poucas garantias de dar certo.

Y: A experiência do Wakefield vem lhe ajudando a entender mais o mundo do futebol?

GD: O Wakefield é fruto de um grande interesse nosso, como torcedores mesmo. Temos muitos erros, sofremos com o imediatismo da torcida e até com o nosso próprio imediatismo. Vamos aprendendo a ser mais racionais, a pensar no clube como uma grande estrutura. Montamos analytics, temos uma aproximação com a comunidade, temos uma filosofia de jogo que será utilizada em campo, com técnicos que nós escolhemos e achamos que vão desempenhar a função como gostaríamos. Mas só vai dar fruto daqui uns anos. Eu sempre falo que são pelo menos 20 anos de projeto para fazer chegar lá em cima. É uma competitividade grande. O processo do futebol, em geral, precisa ser menos emocional

 

 

 


Comentários