O mulato Lacraia ajudou na popularização do Santa Cruz
LENIVALDO ARAGÃO
(Focalizando
um dos primeiros ídolos da longa história do Santa Cruz, homenageamos a torcida
tricolor no dia em que o Clube das Multidões, fundado em 3 de fevereiro de
1914, completa 109 anos de atividades)
Quando o Santa Cruz foi fundado, o futebol no Recife reunia apenas gente de elite. Como se estivesse predestinado a se tornar um clube popular, o hoje Tricolor do Arruda desde o início contou com a colaboração de um jovem de cor. Era Teófilo Batista de Carvalho, conhecido pelos companheiros como Lacraia, que viria a ser mais tarde alto funcionário do Banco do Brasil.
Naqueles primeiros tempos do hoje Clube
das Multidões, Lacraia um rapaz elegante tornou-se uma figura exponencial. Sua
presença na equipe despertava atenção e curiosidade. Ele era uma espécie de
chamariz para que o Santa Cruz ganhasse muitos adeptos nas camadas menos
favorecidas da população. É verdade que Lacraia pertencia a uma família
tradicional do Recife. Filho de médico, tinha o respeito de todos.
Todavia, o que mais impressionava os
adeptos do futebol era sua presença, como centromédio, no time do Santa, numa
época em que o futebol era praticado por gente branca, pois tinha sido
introduzido no País por ingleses ou por pessoas, geralmente de pele clara, que
haviam estudado na Inglaterra, nação considerada o berço do futebol.
O nome desse baluarte dos primeiros
passos do Santa Cruz não consta na ata de fundação, embora ele tinha insistido
para assiná-la no dia seguinte. Não obteve o consentimento do presidente José
Luiz Vieira. Tinha participado de todos os movimentos que antecederam o
surgimento do novo clube, mas não compareceu à histórica reunião de 3 de
fevereiro de 1914 porque estava a braços com os livros, preparando-se para o
vestibular de engenharia. No dia seguinte tentou assinar a ata, todavia, o
presidente não permitiu.
Até 1920 ficou diretamente ligado ao
clube, tendo formado uma intermediária que ficou famosa: Zé de Castro, o
popular Lua Cheia, Lacraia e Manuel Pedro, também conhecido como Professor
porque ensinava futebol aos portugueses que militavam no Clube Almirante
Barrozo (sic).
ESCUDO
TRICOLOR
Foi Lacraia quem desenhou o escudo do
Santa Cruz, quando este passou a ser tricolor, depois de ter nascido alvinegro.
Trata-se do mesmo escudo que ainda hoje simboliza a pujança e a grandeza de um
clube que tem enfrentado inúmeras crises, através dos anos, mas que sabe
trilhar o caminho para superá-las.
A ideia do escudo surgiu numa ocasião em
que um amigo do pai de Lacraia, o velho Ramiro Costa, proprietário da secular
livraria localizada na Rua do Imperador, no centro do Recife, que infelizmente
foi devorada pela voragem do tempo. O dono do estabelecimento, que além de
livros vendia instrumentos musicais, perguntou um dia ao centromédio do Santa,
se ele não estava interessado em mandar confeccionar uns escudos para seu time. Sentindo que o clube precisava de um
distintivo que identificasse seus diretores e simpatizantes, o jovem entusiasta
não hesitou em responder favoravelmente. Ele mesmo elaborou o desenho, e a
encomenda seguiu para os Estados Unidos, pois naquele tempo, tanto no Rio como
em São Paulo não haveria facilidades para atender a encomenda. No Recife nem se
fala.
Quando algum tempo depois, Lacraia foi
informado da chegada dos escudos, a notícia estava acompanhada da conta, cinco
contos de reis. Certamente não se trata de uma operação cambial exata, mas apenas
para tomar o real como parâmetro, calculemos que o jovem Lacraia estava endividado
em, digamos, cinco mil reais. Àquela altura, o presidente da Cobra Coral era
Álvaro Ramos Leal, mais tarde médico, pai do também médico e dirigente do clube
em meados do século passado, Nilson Ramos Leal, e que seria avô do
ponta-direita Carlinhos (Ramos Leal), de vitoriosa passagem pelo próprio Santa,
Sport e América.
Ao ser cientificado do compromisso que
teria que ser saldado com o livreiro Ramiro Costa, Álvaro Ramos Leal deixou seu
companheiro assustado ao dizer que o assunto seria levado à apreciação da
diretoria. Se esta não aprovasse, nada feito. Lacraia que pagasse do seu bolso,
uma vez que o clube nada tinha feito tal encomenda.
Sem dinheiro para cobrir uma despesa tão
alta, o centromédio ficou apreensivo. Porém, para sua tranquilidade, os demais
diretores acharam lindos os escudos. Os maiores podiam ser usados no chapéu –
um dos costumes da época – com os menores sendo presos à lapela e à
gravata.
O AMIGO AGORA NO OUTRO LADO
Uma vitória nos primeiros tempos do Santa
Cruz, que entrou para a história, foi conquistada diante do América, na época,
a maior força do futebol pernambucano. O jogo despertou muita atenção porque
marcava a estreia, na equipe americana, do centroavante Zé Tasso. Este defendia
o Santa Cruz, mas se transferiu para o Alviverde, atendendo ao convite de um
irmão, uma vez que o América era o clube da paixão da família Tasso.
Aquele encontro, portanto, era aguardado
com muita expectativa, e os jogadores do Santa não viam a hora de dar uma lição
no “desertor”. Todos queriam mostrar, embora permanecessem seu amigo, que o
Tricolor não se acabara por causa de sua saída, embora sentisse o desfalque.
No dia do jogo, o campo fervilhava de
torcedores, já que todos desejavam ver Zé Tasso enfrentando os ex-companheiros.
Os adeptos do Santa queriam acompanhar de perto a resposta de seus craques a Zé
Tasso.
DECEPÇÃO
E REAÇÃO
Iniciou-se o jogo. Zé Tasso era
seriamente vigiado, mas com o passar do tempo, o América começou a mandar em
campo, fazendo a defesa santa-cruzense desmoronar-se. Ao encerrar-se o primeiro
tempo, o América vencia por 4 x 1, resultado que provocou um grande desânimo
entre os aficionados tricolores. Enquanto isso, a torcida do América festejava.
No segundo tempo, uma tragédia parecia
esboçar-se no caminho do Santa, depois que os alviverdes assinalaram seu quinto
gol. O placar desfavorável de 5 x 1 era simplesmente vergonhoso para o Santa. E
o atacante Zé Tasso como se comportava, agora que estava do outro lado?
Simplesmente fenomenal, uma vez que havia marcado quatro dos cinco gols dos
americanos. Poderia haver uma estreia melhor?
Faltavam 20 minutos para o jogo
terminar, e muito torcedor tricolor já deixava o campo, levando para casa
decepção e frustração, bem como a lamentação pelo fato de Zé Tasso estar agora
reforçando um adversário.
Ainda não havia a figura do treinador, e
com a tragédia mais do que anunciada, Lacraia, o capitão do time, chamou a
responsabilidade para si. Mandou que Pitota, o craque do Tricolor, fosse para a
ponta direita a fim de fugir da implacável marcação dos zagueiros do América.
Numa época em que não se falava em
esquema tático formal, a mudança feita por Lacraia surtiu efeito. O Santa Cruz foi
forçando o jogo e, quando faltavam 15 minutos para o término da partida, houve
uma penalidade máxima cometida pelo zagueiro Manta. A missão de transformar o
pênalti em gol foi dada a Pitota, possuidor de um tiro notável. Apesar da larga
vantagem do América, aquele tento, que todos esperavam fosse conquistado,
poderia determinar um novo andamento na partida.
Os
deuses do futebol pareciam estar do lado contrário naquele dia. Pelo menos foi
essa a impressão que ficou quando Pitota, um exímio finalizador, carimbou o
travessão da barra guarnecida por Pedro Tasso, irmão de Zé Tasso.
A perda do pênalti, em vez de provocar
desânimo entre os jogadores do Santa, teve efeito contrário. Dois minutos
depois da inditosa jogada, Pitota fazia o segundo gol tricolor. Em seguida
Tiano, o mais tarde catedrático de medicina e senador Martiniano Fernandes,
substituto de Zé Tasso na equipe coral, aproveitava um cruzamento de Pitota
para assinalar o terceiro tento dos corais.
A essa altura, o Santa Cruz já havia
botado o América no quadrado. As investidas dos companheiros de Lacraia
sucediam-se num ritmo incessante. Pitota continuava centrando, e os gols
saindo. Placar final, Santa Cruz 7, América 5. Sem dúvida, uma virada
fantástica, que durante muito tempo foi assunto nas rodas esportivas da
cidade.
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